Uma terapia que integra os cavalos à reabilitação de crianças e adolescentes

Superação poderia estar no sobrenome da Mylena Garcia da Silva. Sem qualquer tipo de exagero. A paulista tem 7 anos e travou uma batalha pela vida antes mesmo de nascer. Luciana Garcia da Silva, a mãe, recebeu dos médicos a notícia de que a segunda filha iria nascer prematura com quatro ou cinco meses de gestação e com risco de não sobreviver caso não houvesse uma interferência da medicina.

Cavalo Ebreu

Cabo Gabriel é um dos equitadores da PMSC e um dos condutores de Ebreu, um dos cavalos usados na equoterapia em Santa Catarina – Foto: Paulo Mueller/ND

Luciana ficou internada durante dois meses em um hospital de São Paulo. “Eles me deram as medicações para segurar a Mylena até os nove meses”, relembra.

Quando chegou o momento do parto, mais um desafio. Não deu tempo de chegar na maternidade. “A Mylena nasceu no carro. Eu mesma fiz o parto”, conta a mãe.

A bebê nasceu saudável, mas com o tempo os pais perceberam algo diferente. Com um mês de vida, Mylena ainda não se movia. “Ela engoliu a sujeirinha do parto. Dali a gente acha que aconteceram os problemas motores da Mylena”, afirma.

A criança começou a fazer tratamentos para a atrofia muscular e teve confirmado, também, o diagnóstico do TEA (Transtorno do Espectro Autista). Com os medicamentos e outras terapias, a menina teve uma melhora no quadro clínico.

De acordo com a mãe, uma evolução ainda maior veio com a equoterapia feita no Regimento da Cavalaria da PMSC (Polícia Militar de Santa Catarina), em São José, na Grande Florianópolis, onde a família mora. “Ela não mexia as mãos, tinha dificuldade para sentar, se mover. Hoje em dia ela chega na terapia e senta. Antes vivia atrofiada, hoje está mais desenvolvida. Eles [os profissionais] colocam a Mylena de costas, deitam ela no cavalo. Ela desenvolveu bastante e está bem feliz”, descreve. Esses resultados vieram com apenas cinco meses de tratamento.

Cinco meses após iniciar equoterapia, Mylena apresentou evolução significativa – Foto: Paulo Mueller/ND

Na equoterapia o cavalo é o protagonista de uma metodologia terapêutica que envolve uma abordagem multidisciplinar com profissionais nas áreas de saúde, educação e equitação. A terapia busca desenvolver a coordenação motora e estimular o cognitivo de pessoas com deficiência a partir da interação entre o paciente e o cavalo.

A psicóloga Victoria Thereza Zulian Rossa esclarece que o método não é usado de forma isolada e única. “A equoterapia funciona como terapia complementar, aliada a fonoaudiologia, psicologia, psicoterapia”, ressalta.

Uma “tropa” de tratamento

A equoterapia é um dos projetos sociais mais antigos e importantes da PMSC. É um serviço gratuito oferecido por meio de uma parceria com a FCEE (Fundação Catarinense de Educação Especial).

O convênio entre as duas instituições foi firmado em 2 de outubro de 1998. Mais de mil crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos foram atendidos pelo projeto. Os cavalos usados nas sessões precisam ser dóceis, calmos e corajosos para não colocar em risco a vida do praticante.

O tenente-coronel Rafael Carlos Dutra, comandante do regimento da cavalaria de São José, explica que os animais geralmente têm uma idade mais avançada e são experientes.

“Selecionamos os animais dentro da nossa tropa que já passaram por diversas situações de policiamento. Foram testados com barulho, fogos, diversos estímulos, e se mostraram o tempo todo, calmos e tranquilos”, conta.

Um dos cavalos é o Ebreu, de 16 anos. O olhar sereno parece acalmar quem chega perto. Ele ajudava a PMSC no patrulhamento das ruas e atuou em manifestações e eventos com público. Quando se aposentou, assumiu a função na equoterapia.

O cabo Gabriel Moraes de Queiroz é um dos equitadores da PMSC e um dos condutores do Ebreu. São cinco anos no projeto. Entre as histórias que ficaram na memória, a de uma criança com paralisia cerebral que apresentava um problema no braço esquerdo. Os profissionais insistiram na terapia para recuperar movimentos do membro superior afetado pela doença.

Não foi do dia para a noite, mas o resultado veio. “Um dia ela carregou o próprio capacete e colocou o objeto utilizando a mão esquerda sobre uma bancada. Coisas mínimas que nós fazemos aqui fazem grande diferença na vida destas pessoas.”

Método envolve time de especialistas para ampliar resultados Além dos policiais, o serviço tem o acompanhamento de especialistas da FCEE.

Psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e educadores físicos integram a equipe que atende 40 pacientes por semana na sede da cavalaria da PM em São José. “A gente percebe uma evolução muito rápida em vários praticantes, principalmente com alguma deficiência física. Eles melhoram a postura, socialização, comunicação, porque o movimento do cavalo contribui para isso”, explica a psicóloga Victoria Theresa Zulian Rossa.

Ela reforça, porém, que em crianças com o Transtorno do Espectro Autista o resultado pode demorar mais tempo para aparecer. Algumas evoluem a passos de bebê e outras muito mais rápidas do que conseguiriam se estivessem somente nas terapias convencionais. Tudo é muito relativo e dependente da condição clínica de cada paciente.

Na sessão, com duração de 30 minutos, os profissionais trabalham a troca de postura dos pacientes que cavalgam de frente e de costas, e até deitados no animal para melhorar a independência, o equilíbrio e a autonomia motora.

“Tem muitas crianças que tem hipotonia que é aquela fraqueza muscular. A gente trabalha força, posturas em pé, sobe e desce, exercício sobre o cavalo, tudo assim de uma forma bem lúdica. Brincando com a criança para ela achar que está brincando quando na verdade está fazendo um trabalho forte ali em cima do cavalo”, contextualiza a fisioterapeuta da FCEE, Fernanda Nathanny Silva Rodrigues.

Sensibilidade dos cavalos e criação de vínculo afetivo

O cavalo é um dos animais mais sensitivos do planeta. Ele tem a capacidade de notar a mão ou a perna trêmula do cavaleiro. Consegue perceber o medo de uma pessoa que se aproxima dele. Pode relutar a seguir o caminho diante de uma situação de perigo.

Apesar de ter vontade própria e força, ele cria um vínculo afetivo com o ser humano quando sente uma relação mútua de confiança. A capacidade de percepção extrassensorial torna o cavalo um animal único em terapias alternativas para a melhora da capacidade motora e cognitiva de pessoas com deficiência.

O andar do cavalo é outro fator levado em consideração nos resultados alcançados com a equoterapia. Gilson Dias Pereira, educador físico da FCEE, relata que a andadura do animal é bem parecida com o movimento do caminhar humano promovendo os estímulos necessários para o desenvolvimento global da criança e do adolescente com deficiência.

“São mais de 1.200 estímulos em uma sessão de 30 minutos. Então esta criança sempre está desenvolvendo os estímulos de percepção. O animal ele também sente, faz o bem para a criança, está sempre cuidando e olhando”.

Os pais Ariana e Sidinei comemoram o desenvolvimento postural e sensorial do pequeno Adrian Gabriel, de 5 anos – Foto: Paulo Mueller/ND

Adrian Gabriel da Silva Kuster tem 5 anos. Os pais ficaram um ano na fila de espera para conseguir uma vaga na equoterapia e começar o tratamento complementar para o filho autista. Eles moram em Águas Mornas, na Grande Florianópolis, onde trabalham na lavoura.

Toda semana levam o Adrian na cavalaria da PM em São José. “Começamos este ano e estamos adorando”, comemora Sidinei Kuster, pai do Adrian.

Em menos de seis meses de tratamento, a mãe, Ariana Karine da Silva Kuster, viu o menino desenvolver a postura e a parte sensorial. “Com relação a cheiros, experimentação com o pelo e a textura do cavalo. A gente costuma dizer que ele era uma plantinha. Hoje ele quer explorar as coisas, sair do lugar, ter a percepção das coisas”, descreve a mãe.

O cabo Gabriel faz questão de ressaltar. “O grande ator disto tudo é o cavalo. É um animal que é muito dócil e ele nos ajuda, ou nós o ajudamos, a tentar trazer um pouco mais de qualidade de vida para estas famílias, um pouco mais de aprendizado para estas crianças”, explica.

Como acessar o serviço

A equoterapia em parceria entre a PMSC e a FCEE é destinada para crianças e adolescentes entre quatro e 17 anos. Além disso, é preciso se enquadrar em algum dos diagnósticos clínicos atendidos pelo projeto.

O atendimento é voltado para quem tem deficiência intelectual moderada ou grave, deficiência múltipla, TEA (Transtorno do Espectro Autista) nível 2 ou 3, distúrbios envolvendo estruturas e funções do SNC (Sistema Nervoso Central) ocorridos durante o período do desenvolvimento neuropsicomotor, além de educandos atendidos no SPE (Serviço Pedagógico Específico) do Cevi (Centro de Educação e Vivência) e que não frequentam Programa de Reabilitação.

A porta de entrada no serviço é por meio da FCEE, responsável pelos encaminhamentos dos pacientes. No regimento da Cavalaria da PM em São José as sessões ocorrem às terças e sextas-feiras. A equoterapia também é oferecida nos regimentos de Chapecó, Criciúma, Joinville e Lages.

Locais em Santa Catarina que oferecem serviço de equoterapia – Foto: Fabiano Peres/ND

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