Ponte Hercílio Luz: travessia pioneira entre Ilha e Continente completa 97 anos

A Ponte Hercílio Luz, travessia pioneira entre Ilha e Continente e ponto turístico mais famoso de Florianópolis, completa 97 anos neste sábado (13). Quase centenária, ela continua festejada como símbolo da cidade e ostentando a condição de seu ícone mais importante.

Para moradores e nativos, cruzar a ponte é sempre um motivo de regozijo, seja a pé, de bicicleta, sobre quatro rodas ou de ônibus.

Ponte Hercílio Luz, hoje novinha em folha, já foi palco de muitas transformações na capital catarinense

Ponte Hercílio Luz completa 97 anos neste sábado (13) – Foto: Leo Munhoz/ND

Muitas pessoas que atravessam a ponte Hercílio Luz, hoje novinha em folha, não imaginam que essa velha senhora dividiu grupos políticos no Estado, assistiu a várias tentativas de suicídio (algumas delas concretizadas), teve dormentes retirados por medo de invasão da Ilha de Santa Catarina, testemunhou a chegada e a partida de ilhéus que viajavam de navio a Santos e Rio de Janeiro e, do alto de sua imponência, viu uma capital pacata e provinciana se tornar um dos mais movimentados pontos turísticos do país.

A vista que ela proporciona deslumbra, e mesmo nos dias de vento forte, quando balança a ponto de assustar os transeuntes, costuma reter os menos apressados, que fazem fotos e selfies para guardar e compartilhar com os amigos.

Ali, é comum ouvir diálogos em diferentes idiomas e ver gente com roupas e jeito de quem vem de longe.

Um assíduo passante é o vendedor de loterias Luiz Henrique de Miranda, 36 anos, nativo da Ilha e morador do Estreito. “Nasci na maternidade Carmela Dutra e era pequeno quando a ponte foi fechada”, diz ele, referindo-se à interdição definitiva da estrutura, em 1991, depois que se descobriu que ela estava comprometida pela ruptura de uma barra de olhal na torre do lado insular.

“Cresci sabendo que não se podia passar, por causa das obras”, ressalta Miranda, que convive bem com a aragem às vezes incômoda que o poeta João da Cruz e Sousa, bem antes da construção da travessia, chamou de “velho vento vagabundo”.

Também habituada a passar por ali quase diariamente, a teóloga Regiane Soares da Cunha Domingos, 55 anos, não cansa de falar da satisfação de perfazer os 821 metros do vão da ponte, caminhando ou sobre uma bicicleta.

Paraense Regiane Soares da Cunha Domingos atravessa a pé ou de bicicleta a ponte Hercílio Luz – Foto: Leo Munhoz/ND

O sol refletido nas águas e o vento frio compõem o “caminho agradável” que faz, sempre sem pressa. Aprendeu a conviver com as oscilações dos dias ventosos e se apoia no argumento de uma filha arquiteta, para quem o balanço é normal numa estrutura desse porte.

Regiane é paraense de Belém e se mudou quando outra filha, que é fisioterapeuta, foi aprovada em um concurso em Florianópolis. “Vim passar 40 dias com ela e me apaixonei pela cidade”, conta.

Ainda que tenha problemas, a capital catarinense não enfrenta a violência de sua cidade natal. Casada pela terceira vez (“com um manezinho”, ressalta), ela tem três filhos e quatro netos e também elogia o clima, as pessoas e a comida locais.“Deus fez disso [Floripa] um paraíso”, afirma.

Carvão em brasa e os dormentes queimados

O professor e pesquisador João Batista Soares, 82 anos, viveu o tempo em que a Hercílio Luz era a única ligação física entre Ilha e Continente. Passou muitas vezes por ela, mas também estudou sua história e episódios marcantes que tiveram a ponte como protagonista.

Num desses acontecimentos, parte dos dormentes do piso de madeira foi queimada por incúria de um grupo de soldados que fez a travessia a pé para executar exercícios militares na Ilha e deixou cair carvão em brasa na pista.

Ainda antes disso, em 1930, tropas que apoiavam Getúlio Vargas removeram os dormentes de madeira para evitar um eventual ataque das forças federais que queriam impedir o avanço do caudilho gaúcho rumo ao Rio de Janeiro, para tomar o poder. A Ilha apoiava Vargas, mas a represália nunca ocorreu.

Boa parte da população de Florianópolis ocupou a cabeceira insular da ponte para assistir à chegada do navio Carl Hoepcke, que pegou fogo em Santos em setembro de 1956 e foi “amarrado” ao Anna, outra embarcação da Cia. Hoepcke, para voltar a Santa Catarina. O clima era de consternação quando os navios se aproximaram do estaleiro Arataca para o reparo e as pessoas viram a joia da companhia de navegação totalmente calcinada.

“Foi uma cena muito triste”, relata o pesquisador. “Eu mesmo tinha ido ao Rio com minha mãe naquele navio, passando por Itajaí, Paranaguá e Santos”, recorda João Batista.

Na primeira classe dos passageiros havia um piano, e a cidade parava para ver o embarque e desembarque dos viajantes no cais Rita Maria, que ficava muito perto da ponte Hercílio Luz.

Obra pôs fim ao isolamento da Capital

O serviço de balsas era a única opção para o transporte de mercadorias e de pessoas antes da construção da ponte. A qualidade era precária, Florianópolis vinha crescendo muito e o governador Hercílio Luz, engenheiro com visão empreendedora, projetou a estrutura de ferro que levaria o seu nome.

O isolamento da Capital também justificava o projeto, que previa financiamento externo para ser executado. As obras começaram em 1923, a cargo da empresa americana Robinson e Steimann.

A estrutura de 821 metros de comprimento foi concebida para suportar o tráfego de trens elétricos, veículos e pedestres e era a primeira com essas características na América Latina.

Com as obras em andamento, Hercílio Luz viu-se obrigado a se afastar do cargo para tratar de problemas de saúde. Ele morreu em outubro de 1924, um ano e meio antes da entrega da obra, em maio de 1926.

Reinaugurada em dezembro de 2019, a Hercílio Luz permite a passagem de pedestres, ciclistas e automóveis – Foto: Leo Munhoz/ND

Uma vez inaugurada, a ponte provocou uma mudança muito grande na cidade, pois foi preciso abrir vias de acesso e melhorias exigidas pela expansão urbana. As décadas seguintes foram de grande crescimento demográfico – a população de Florianópolis, que era de 41.338 pessoas em 1920, passou para 167.538 em 1976.

O temor de que viesse a ruir, como ocorrera com construções similares no exterior, levou o governador Colombo Salles a projetar uma segunda travessia.

O primeiro fechamento da Hercílio Luz foi em 1982, por medida de segurança, já que os engenheiros detectaram sérios problemas na estrutura.

Reaberta em março de 1988 para o tráfego de pedestres, bicicletas, motocicletas e veículos de tração animal, ela foi novamente interditada em julho de 1991, depois que um relatório técnico mostrava risco real de desabamento.

Dali para frente, mesmo tombada como patrimônio histórico e artístico, a ponte foi objeto de uma longa manutenção que sugou milhões em recursos públicos, passando por diversas gestões estaduais sem uma solução definitiva.

Somente em dezembro de 2019 é que a estrutura foi devolvida à população, totalmente restaurada.

A travessia nas letras e nas artes

A ponte Hercílio Luz está há quase um século inserida na rotina dos moradores da Capital, mas também inspirou artistas, poetas, cronistas, cineastas, músicos e jornalistas da cidade.

Eduardo Dias (1872-1945), um dos grandes nomes das artes plásticas de Santa Catarina, legou à posteridade uma ponte estilizada, em obra que está no acervo do Masc (Museu de Arte de Santa Catarina).

O pintor Hiedy de Assis Corrêa, Hassis (1926-2001), o cronista Sérgio da Costa Ramos, os jornalistas Raul Caldas Fº e Aldírio Simões (1942-2004), o compositor Luiz Henrique Rosa (1938-1985) e o escritor Salim Miguel (1924-2016) estão entre os que admitem terem sido influenciados pela ponte em seu trabalho ou na criação de pinturas, músicas e textos literários.

O cineasta Zeca Pires produziu o documentário “Ponte Hercílio Luz – Tragédia anunciada” (1996), que simula a ponte ruindo sob o próprio peso. Ainda no cinema, a ponte foi cenário do longa-metragem “O preço da ilusão” (1958), em preto e branco, do qual sobraram as imagens de um carro despencando da ponte.

Em uma entrevista, o escritor Salim Miguel definiu o filme como “uma crônica da cidade influenciada pelo expressionismo alemão e pelo neorrealismo italiano”.

Carne escondida embaixo das melancias

Antigo açougueiro no Mercado Público, de onde saiu a partir da mudança do mix, em 2015, Rogério Livramento contava que sua família tinha uma propriedade localizada próximo à cabeceira continental da ponte Hercílio Luz e que trazia carne bovina e produtos agrícolas ao Centro da cidade.

Ele, o pai e os irmãos atravessavam a carga numa carroça puxada por quatro cavalos, geralmente de madrugada ou nos domingos à tarde, abastecendo o próprio açougue e outras bancas do principal entreposto comercial da época na Ilha.

“A carne vinha escondida embaixo de melancias ou folhas de bananeira, porque a prefeitura era a única fornecedora do Mercado e não permitia o produto de outras origens, considerado clandestino”, contou ele, na época.

Um corpo caindo no mar

O paranaense José Ruiz, responsável pela coordenação dos trabalhos de manutenção da Hercílio Luz durante 38 anos, testemunhou vários casos de pessoas que tentaram o suicídio se jogando da ponte.

Em quatro casos, eles conseguiram seu intento, caindo em terra, na água ou sobre as estruturas de madeira adjacentes. “Às vezes, a gente só ouvia o barulho do corpo caindo no mar”, contou Ruiz em entrevista.

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