Celulares estão “proibidos” nas escolas. E agora?

O ano letivo de 2025 iniciou ou está prestes a iniciar nas escolas com uma novidade e tanto! Com a sanção da Lei nº 15.100/2025, está vedado o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante as aulas, recreios e intervalos em todas as etapas da educação básica, exceto quando houver fins pedagógicos para a utilização destes dispositivos. O objetivo, conforme o texto da lei, é “salvaguardar a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes, promovendo um ambiente escolar mais saudável e equilibrado”.

 

Diante do hábito de uso de smartphones em absolutamente todos os ambientes, a todo momento e por praticamente toda a população, é de se imaginar que o impacto será significativo no dia a dia das escolas. As professoras Marlei Dambros e Lucélia Peron, que atuam na UFFS e têm estudado temas relativos à educação e os desafios da contemporaneidade, consideram que este é um momento ímpar para que todos os envolvidos compreendam a importância do uso destes dispositivos de forma saudável, de modo a não prejudicar o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

 

Conforme Marlei, “um dos primeiros desafios da regulação é a construção de um debate alinhado entre os envolvidos (gestão escolar, professores, estudantes, familiares e sociedade), no sentido de compreender o que está disposto na lei, considerando, especialmente, o objetivo da mesma, que é ‘salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes’. Para além disso, conscientizar que essa pauta faz parte de um debate mundial, que engloba estudos e pesquisas de profissionais de diferentes áreas, os quais sinalizam diferentes problemáticas envolvendo o tema, além de relatórios de monitoramento globais sobre educação, desenvolvidos pela Unesco, que indicam que o excesso de telas tem causado prejuízos no aprendizado”.

 

Marlei afirma que, no estado de Santa Catarina, a Lei nº 14.363, de 2008, já proibia o uso de telefone celular nas salas de aula das escolas públicas e privadas. “Porém, não criou nenhuma especificação a respeito dos limites de uso, sendo seu monitoramento definido por cada unidade escolar. Já a lei federal dispõe sobre a restrição, a permissão e suas excepcionalidades. Contudo, não proíbe o porte, permitindo que os estudantes continuem com seus dispositivos, desde que respeitem as diretrizes estabelecidas. Além disso, a lei estabelece que as escolas devem desenvolver estratégias para prevenir e tratar o sofrimento psíquico dos alunos, com foco nos efeitos do uso excessivo de dispositivos; devem oferecer treinamentos para detectar esses problemas; e disponibilizar espaços de escuta e acolhimento para estudantes e funcionários em sofrimento psíquico ou monofobia”, comenta.

 

 

Implantação do que prevê a lei nas escolas

 

Para atender o que prevê a lei, as escolas precisarão criar mecanismos para restringir o uso dos celulares. Este é um dos desafios iniciais desta volta às aulas, afinal, como isso deve ser feito? Lucélia destaca que “ficar sem usar este equipamento poderá causar inquietação, irritação, ansiedade e, em casos mais graves, para quem é viciado (nomofobia), crises de abstinência. Os professores estão lidando com um público que é muito ativo no mundo on-line e, muitas vezes, apático na interação em sala de aula. Diante disso, a legislação visa regulamentar o uso consciente dos dispositivos eletrônicos: diminuir o uso excessivo e descontextualizado e, na medida do possível, ampliar o uso pedagógico. No entanto, encontrar um ponto de equilíbrio para este uso, num primeiro momento, não será tarefa simples e fácil, especialmente com os jovens, público do Ensino Médio”.

 

Lucélia lembra, também, que outro desafio será implementar o que a própria legislação prevê: “elaborar estratégias para tratar do tema do sofrimento psíquico e da saúde mental dos estudantes; oferecer treinamentos periódicos para a detecção, a prevenção e a abordagem de sinais sugestivos de sofrimento psíquico e mental; disponibilizar espaços de escuta e de acolhimento para receberem estudantes ou funcionários que estejam em sofrimento psíquico e mental decorrentes principalmente do uso imoderado de telas”.

 

“Como as escolas vão fazer isso se não têm estrutura física e de pessoal (nas escolas não há equipes multidisciplinares constituídas por pedagogos, psicólogos, psicopedagogos, médicos)? Será que, mais uma vez, é jogada para a escola uma responsabilidade que pode ser considerada um problema de saúde pública? Estudos têm evidenciado que os membros das gerações mais novas enfrentam os maiores índices de ansiedade, depressão, solidão, automutilação e pensamentos suicida, devido a intoxicação provocada pelo uso excessivo de telas e redes sociais. Eles estão cada vez mais sozinhos, pois as interações reais, cara a cara, estão cada vez mais escassas. Compreendo que a escola pode contribuir para problematizar essa situação, mas não resolver. O maior tempo que os estudantes ficam em frente as telas é na escola ou fora dela?”, questiona Lucélia.

 

“Entendo que escola desempenha um papel fundamental na problematização do uso excessivo das telas, mas não pode, sozinha, solucionar essa questão, que envolve fatores sociais, familiares e individuais. Afinal, seria a escola o principal espaço onde ocorrem os excessos? Embora os dispositivos eletrônicos sejam utilizados no ambiente escolar, seja para fins pedagógicos ou recreativos, é fora desse contexto — especialmente no ambiente doméstico — que os estudantes passam a maior parte do tempo imersos nas telas. Portanto, a materialização da lei depende do comprometimento de todos envolvidos”, completa Marlei.

 

“Os estudantes que chegam às escolas atualmente estão imersos no mundo tecnológico. Trata-se de uma geração conectiva, que aprendeu mais palavras por meio de máquinas do que pela voz materna e se encontra em uma condição inédita. A internet, as telas e os objetos maravilhosos dispostos nas prateleiras virtuais são parte de seus determinantes históricos. Dessa forma, é inevitável questionar como esses estudantes vão se desprender desses dispositivos compactos e sofisticados, com uma interface cheia de ícones, uma memória infinitamente superior à sua e a capacidade de resolver problemas em tempo real e dar respostas imediatas?”, questiona.

 

De acordo com Marlei, “pesquisas nacionais e internacionais apontam uma relação preocupante entre o uso excessivo de celulares e diversos malefícios, evidenciando situações alarmantes, como o aumento de transtornos psicológicos, índices elevados de depressão, medo, ansiedade, insegurança, comportamentos autolesivos, pensamentos suicidas e uma crescente dependência de medicamentos psicotrópicos entre jovens. A internet, utilizada como principal ferramenta de interação social, substitui o prazer dos contatos reais pela experiência virtual ininterrupta, a tal ponto que muitos indivíduos passam a negligenciar refeições, reduzir ciclos de sono e optar pelo isolamento social”.

 

 

Papel da escola e dos pais

Marlei recomenda, como primeiro passo aos professores, o acesso aos materiais com orientações disponibilizados pelo Ministério da Educação e a apropriação do conteúdo de apoio, além da busca de leituras sobre a temática. Ela afirma que “é fundamental criar espaços de escuta com um mapeamento participativo de expectativas, contemplando professores, estudantes e familiares, a fim de construir um diagnóstico inicial” para a implantação do prevê a lei federal. Além disso, é imprescindível envolver todos na construção das regras e protocolos, garantindo um trabalho colaborativo que possibilite avaliações e readequações sempre que necessário. Estabelecer momentos formativos e diálogos contínuos, tomando como ponto de partida as questões derivadas dos diagnósticos sobre o uso das telas e suas implicações, também se faz essencial”.

 

“Ouvir as expectativas e anseios dos estudantes e pais/responsáveis em relação à lei é a primeira atividade a ser feita. Depois, a partir deste diagnóstico, estabelecer diálogos; conversar sobre as consequências do uso excessivo de telas para a saúde física, emocional e cognitiva; envolver os estudantes na construção das regras, para que eles se sintam protagonistas do processo. Ainda, os pais/responsáveis precisam ser parceiros das escolas e professores. O diálogo em casa vai refletir na aceitação e comportamento dos estudantes para com a atual situação. Esse trabalho educativo deve ser feito por todas as pessoas que fazem parte da comunidade escolar”, afirma Lucélia.

 

“A recepção escolar deve oportunizar ao máximo a exploração dos diferentes territórios educativos, promovendo atividades recreativas, acesso a áreas verdes, intervalos musicais, entre outras iniciativas. Já os pais e responsáveis precisam atuar como aliados da escola, fomentando momentos de desconexão familiar e abordando o tema em casa. Dessa forma, esses diálogos poderão refletir positivamente no ambiente escolar, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica em relação à redução do uso das telas”, sugere Marlei.

 

Para Marlei, “é essencial que os pais estejam informados sobre as evidências apontadas pelos estudos a respeito das consequências do uso excessivo dos dispositivos tecnológicos. Eles devem ser orientados a observar o comportamento dos filhos em casa, estabelecendo regras claras para o uso desses dispositivos, monitorando tanto o tempo quanto as finalidades. Além disso, é fundamental que reflitam sobre estratégias para equilibrar essa relação, identificando padrões e necessidades individuais. Os familiares também precisam se autoavaliar quanto ao próprio tempo de exposição às telas, promovendo momentos de desconexão em família, incentivando atividades ao ar livre, a prática de esportes, a leitura e o fortalecimento das interações presenciais, sobretudo momentos de lazer em conjunto”.

 

“É fundamental que os pais tenham conhecimento do que os estudos têm evidenciado sobre as consequências desse excessivo uso dos artefatos tecnológicos para, a partir disso, reconhecer as características, perfil e comportamentos dos seus filhos, e pensarem em ações como: combinar as regras do uso dos dispositivos eletrônicos, de forma especial do celular em casa (por quanto tempo, para quais atividades, …); organizar momentos de desconexão em família; estimular a realização de atividades ao ar livre, prática de esporte, leituras, interações reais”, sugere Lucélia.

 

Importância da lei

De acordo com Marlei, “o debate acerca da lei e suas diversas implicações é de extrema relevância no contexto contemporâneo, especialmente considerando que este tema nunca teve tamanha centralidade quanto agora. Este é um momento ímpar para que escolas, professores, estudantes, famílias e a sociedade em geral promovam espaços de ensino e aprendizagem dialógicos e colaborativos, abordando uma questão que, cada vez mais, pode influenciar o futuro da humanidade”.

 

“Acredito que é uma oportunidade para escolas, professores e estudantes aprenderem juntos. Se as escolas e professores conseguirem desenvolver um trabalho coletivo e colaborativo com os estudantes será um grande ganho para o processo educativo. Ouvir as demandas dos estudantes em relação a lei, a rotina escolar, as aulas e pensar em ações formativas para os professores, que tratem sobre uso pedagógico dos artefatos tecnológicos, poderão ser estratégias que possibilitarão a implementação de aulas mais dinâmicas e interativas, fomentando um processo de ensino e aprendizagem outro, dinâmico e envolvente, condizente com a realidade deste início do século XXI. Deixar os estudantes por quatro horas sentados copiando do quadro, não dá mais”, enfatiza Lucélia.

 

“O diagnóstico das questões relacionadas à lei poderá fornecer subsídios valiosos para o planejamento de aulas que explorem novos territórios educativos. Isso permitirá o aprimoramento de inovações pedagógicas mais dinâmicas e atraentes para os estudantes. Outro aspecto importante é o estímulo ao uso pedagógico das tecnologias. Além de estabelecer limites para o uso dos dispositivos, promove um uso mais consciente e orientado das ferramentas digitais, incentivando os professores a incorporá-las de maneira estratégica no processo de ensino. Isso possibilita aulas alinhadas às metodologias educacionais mais modernas”, considera Marlei.

 

Conforme Lucélia, com a implantação da lei será possível contemplar, no currículo escolar, debates sobre “tecnologias de um modo amplo e crítico, discutindo os benefícios e malefícios que elas trazem; ciberbullying; segurança no espaço virtual, dentre outras. Também, poderemos ter os estudantes mais focados e interessados nas aulas e mais sociáveis. O que a neurociência tem indicado é que nosso cérebro demora cerca de 25 minutos para voltar ao foco total após ter sido interrompido por uma notificação. Então, eliminar distrações é extremamente importante para a aprendizagem”.

 

“Ao integrar o uso consciente e ético da tecnologia no ambiente escolar, o debate contribui para a formação de estudantes mais preparados para lidar com as questões digitais de maneira segura, consciente e reflexiva. Essa abordagem amplia a educação tecnológica, tornando os alunos mais críticos em relação ao uso da internet e das redes sociais, além de ajudá-los a entender os riscos e as responsabilidades associadas ao mundo digital”, afirma Marlei.

 

“A implementação de momentos de desconexão dentro da rotina escolar contribui significativamente para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais essenciais, como a colaboração, a empatia e a comunicação interpessoal. Tais habilidades são fundamentais para a formação integral dos alunos, permitindo que se tornem cidadãos completos e preparados para os desafios da convivência social e profissional”, diz Marlei.

 

Lucélia considera que o que se espera com a nova lei é “uma melhora do processo educativo: mais envolvimento dos estudantes com sua aprendizagem; melhor rendimento escolar; mais socialização e interação com os colegas e professores. É inegável os benefícios dos avanços tecnocientíficos em todos os aspectos das nossas vidas. Mas também é inegável os prejuízos que eles têm ocasionado nos membros das gerações mais jovens, desde o somático (obesidade, sedentarismo, LER, lesões nos olhos, na coluna, dor de cabeça), passando pelo emocional (irritabilidade, insônia, ansiedade, hiperatividade, depressão, tristeza, isolamento, desânimo, baixa autoestima, choro fácil, automutilação, ideias e tentativas suicidas), atingindo o cognitivo (linguagem, concentração, interpretação, síntese) e o desempenho escolar.

 

Como destaca Lucélia, o próprio MEC, no site “Celulares na Escola”, afirma: “a regulamentação do uso de dispositivos digitais nas escolas não significa uma proibição. É parte de uma iniciativa maior que busca promover um ambiente mais seguro e saudável”. Ela ressalta, porém, que necessário que a implementação da lei seja acompanhada de avaliações periódicas e contínuas, para que se possa fazer os ajustes necessários e verificar os resultados.

 

Pesquisas

Marlei, em sua tese de doutorado, defendida em meados de 2023, intitulada “Jovens Contemporâneos e as Variáveis do Processo Civilizatório”, pesquisou como as variáveis do processo civilizatório afetam os jovens contemporâneos nos âmbitos educacional, social e humano. Para isso, foram realizadas entrevistas com 20 jovens pertencentes a diferentes contextos sociais na região Oeste de Santa Catarina.

 

Lucélia está em fase de desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado, na qual discute a formação de professores considerando os desafios do contexto educacional contemporâneo, de modo especial, o perfil e características dos atuais estudantes e a dinamicidade da sociedade contemporânea, ambos marcados pela hiperconexão global. São colaboradores do estudo professores que atuam no Ensino Médio em diferentes regiões do Brasil – RS, SC, MA e AM

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