‘Ouro verde’: os avanços econômicos e medicinais da cannabis no Brasil e SC

Através do desespero de uma família ao ver a filha mais nova, aos 3 anos de idade, convulsionar reiteradamente e não responder positivamente a nenhum medicamento convencional, nasceu o mercado de cannabis medicinal no Brasil, e anos depois, em Santa Catarina.

A necessidade e expansão do mercado, obviamente, não poderiam ser resumidas a um parágrafo, então retornaremos alguns anos, mais especificamente a 2014, primeira vez em que um produto à base de cannabis foi usado legalmente no país.

A paciente é Anny de Bortoli, que em 2012 recebeu o diagnóstico de Síndrome CDKL5, um distúrbio neurológico grave e raro, que chegava a causar cerca de 80 convulsões por semana, aos 3 anos de idade.

Mercado da Cannabis medicinal cresce surpreendentemente no Brasil

Disseminada entre a classe médica e mídia, cannabis medicinal é aposta no mercado e na medicina – Foto: Erik Amazonas/UFSC/Divulgação/ND

Antes disso, os pais de Anny, desesperados, importaram ilegalmente o medicamento com canabidiol ao Brasil. Eles chegaram a ir até os Estados Unidos, onde a produção do remédio já era legalizada- através da HempMeds- para trazê-lo ilegalmente ao Brasil.

Anny foi, portanto, a paciente zero de canabidiol no país, a primeira a receber autorização judicial, em 2014, para importar o medicamento. Assim como nos Estados Unidos, os familiares compraram o medicamento através da unidade brasileira da HempMeds.

Os caminhos do mercado e medicinal da cannabis em SC e no Brasil

Anny de Bortoli foi a paciente zero de cannabis medicinal do Brasil, a primeira a conseguir autorização judicial para o uso – Foto: Agência Brasília/Reprodução/ND

“Temos o maior orgulho de dizer que o paciente zero do Brasil é HempMeds. E esse movimento, em 2014, se deu através desse paciente, que fez com que se iniciasse um movimento de liberação e flexibilização no Brasil”, explica André Bissoli Guerini, diretor comercial da HempMeds.

Da necessidade, nasce o mercado

As eficácias dos tratamentos com medicamentos a base de cannabis foram se espalhando no país, especialmente “de boca em boca”, gerando inicialmente a necessidade de empresas que importassem o medicamento.

Breve contexto histórico da HempMeds no Brasil – Foto: Grazi Guimarães/ND

Em 2012, a HempMeds abre um escritório- ainda digital-, no Brasil, já de olho num potencial mercado.

“Com o paciente zero identificamos uma necessidade do mercado e estabelecemos uma operação aqui no Brasil. Eu diria que nós fomos escolhidos, é muito gratificante fazer parte disso porque é nítido a forma como o mercado começou no Brasil, através de uma necessidade dos próprios pacientes”, completa Bissoli.

Em 2018, a HempMeds abre o primeiro escritório físico no país, uma casa focada no treinamento de médicos. Diante de um mercado que parece muito burocrático, tendo a necessidade de importação junto à Anvisa, a empresa nasce com o objetivo de simplificar o processo e acolher os pacientes e familiares.

A HempMeds faz parte de um conglomerado de empresas globais e o foco no Brasil é o de intermediar a importação pelo paciente.

“Nós ajudamos o paciente em todas as etapas, desde sanar as dúvidas mais simples, até a ajuda da documentação, e eu diria que aqui na HempMeds nós fazemos esta intermediação por meio de uma área de acolhimento. Muito mais que atender o paciente, nós precisamos acolher”, reafirma Bissoli.

Mães atípicas no mercado de trabalho

Com a necessidade de um atendimento humanizado, que acolhesse pacientes e familiares atordoados com a burocracia à sua frente, mães atípicas, nome dado a mães de pessoas com deficiência ou síndromes raras, passaram a integrar a equipe de atendimento da HempMeds.

“Muitas mães, pais, filhos e filhas, o próprio paciente, chegam com diversas dúvidas e receios e o nosso time tenta acolher. Nós não temos um viés comercial neste acolhimento, a venda é uma consequência”, destaca Bissoli.

“No Brasil, nosso time é digital e pessoal, o que em muitos casos é até um paradoxo, como ser digital e pessoal? Simples: a gente está presente nos canais digitais, mas não se utiliza de robôs ou qualquer tipo de chat bot. Temos um atendimento totalmente humanizado, pois o tema é muito sensível. O mercado já é muito burocrático, então no nosso atendimento a gente tem que ser o mais simples possível, atender de forma rápida e com qualidade de informação”, reitera o diretor comercial da HempMeds.

Portanto, na equipe de acolhimento há mães de pacientes que são acolhedoras. “Essas pessoas não estavam inseridas no mercado de trabalho naquele momento e a gente as chamou para nosso time, porque, além de uma vocação profissional, acaba que temos uma história atrelada a essas mães, de superação pessoal junto aos filhos e como o medicamento mudou a vida da família”, salienta.

Cannabis catarinense

Só em 2023, uma empresa catarinense importa – pela primeira vez– medicamentos a base de cannabis ao Estado. Focada em diversas áreas do comércio exterior, mais uma vez, a necessidade de clientes, fez com que a Tek Trade buscasse se inserir no mercado de importação de medicamentos e produtos com canabidiol ou CBD.

“Nossa introdução se deu através de um cliente, o qual ajudamos a encontrar um fornecedor e fizemos o registro junto à Anvisa, e iniciamos com o objetivo de desmistificar o uso do produto de forma regulamentada. Há uma série de benefícios, sob prescrição, o que pode agregar na sociedade em geral”, destaca Sandro Marin, CEO da Tek Trade.

A Tek Trade atuou contratando uma empresa que fez o gerenciamento e a concentração de 50 prescrições e, após isso, viabilizou a importação conjunta. “Foi um processo demorado, burocrático, já que a Anvisa tem uma série de especificidades, um processo que gira em torno de um mês”, explica Marin.

Um mercado pujante

A indústria de medicamentos à base de cannabis no Brasil aponta um mercado extremamente pujante, mas ainda quase embrionário. Há um crescimento de 100%, ou seja, o mercado dobra ano após ano, tanto no valor de vendas, quanto no número de pacientes, de acordo com empresas de auditoria do mercado, como a Close-Up.

Dos 546 mil médicos no Brasil, apenas 15 mil prescrevem cannabis, o que representa  2,7% da comunidade médica de acordo com a Close-Up.

“É um número baixo, mas em 2020 esse índice era de 1%, o que mostra que, apesar de muito pequeno, há um crescimento muito rápido”, destaca Bissoli. Já os médicos prescritores em Santa Catarina representam apenas 3,6% dos total nacional.

Em relação aos pacientes, há uma estimativa de 6,9 milhões em potencial no Brasil e atualmente há 187,5 mil pacientes que usam cannabis medicinal, 2,7% do total, o que indica o início do mercado, mas em uma taxa crescente anual extremamente alta. Santa Catarina representa 4,3% do mercado nacional de CBD.

Importante avaliar também a popularização do tema na mídia através de influenciadores, classe política e médica. Não à toa, atualmente 24 estados brasileiros tem projeto ou lei para acesso da Cannabis no SUS (Sistema único de Saúde), entre eles Santa Catarina.

Foco na classe médica

O marketing de empresas como a HempMeds, no entanto, não está voltado aos pacientes e sim aos médicos, já que a venda depende exclusivamente de uma receita médica.

“O que estamos fazendo para fomentar o mercado- além do nosso pioneirismo-  desde 2015 já colaboramos com a importação de quase 150 mil unidades de cannabis medicinal para pacientes brasileiros, além disso, atuamos como relevante fonte de conhecimento científico para profissionais de saúde, não só médicos, mas diversos tipos de profissionais”, destaca Bissoli.

A HempMeds já disponibilizou mais de 50 horas de cursos gratuitos em uma plataforma própria de educação, e além disso, são apoiadores do curso de extensão em medicina canabinóide da USP (Universidade de São Paulo), considerado o curso de curta duração mais procurado na história da universidade.

“Mudamos o jogo na educação, nos bastidores, trazendo conhecimento a sociedade como um todo, com pacientes, médicos e demais profissionais”, reitera Bissoli.

Vias de acesso a cannabis

A partir da avaliação conjunta do médico e paciente, e da decisão pelo início do tratamento com medicamentos a base de cannabis, alguns caminhos são possíveis.

A forma mais difundida é adquirir o medicamento via importação. Neste processo, o médico faz uma receita tradicional para o paciente. Porém, é necessária a autorização da Anvisa.

De acordo com o médico Marcos Pereira, ortopedista e prescritor de cannabis medicinal, o paciente consegue a autorização da Anvisa com o auxílio do representante da empresa de cannabis que o médico prescreveu.

“O médico faz a receita, entrega para o paciente e para o representante. Ele faz esse trâmite junto ao paciente, e o produto chega pelos Correios”, explica.

Outra alternativa são os produtos disponíveis já nas farmácias. Para isso, é preciso uma receita médica do tipo B, de cor azul, usada para medicamentos controlados. Com a receita em mãos, o paciente vai até a farmácia e compra a cannabis medicinal, de acordo com a recomendação médica.

Já é possível adquirir a cannabis medicinal em farmácias e drogarias, mediante receita médica – Foto: Pixabay/Ilustrativa/Reprodução/ND

A terceira via é realizar a compra por meio de associações. Para isso, é preciso uma receita controlada, como de antibiótico. Por serem associações sem fins lucrativos, que cultivam a planta e produzem o óleo, o produto é comercializado de forma mais barata. São produtos nacionais, feitos de uma forma artesanal.

A possibilidade de importação do medicamento abriu espaço para o surgimento de empresas voltadas a este setor, assim como de empresas que desenvolvem produtos no país para a venda em farmácias e drogarias.

É o caso da Endogen, healthtech de produtos de Cannabis medicinal e nutrição. Com diferentes frentes, a empresa atua tanto na importação da cannabis medicinal como também oferece medicamentos nas farmácias.

“Hoje a gente tem duas vias de acesso: na farmácia via RDC327 e na importação via RDC660. Se o médico achar que é necessário o tratamento, e der a prescrição, aí ele segue com uma dessas duas vias”, explica Kali Nardino, Chief Marketing Officer da Endogen.

Os produtos à base de cannabis da Endogen estão disponíveis em grandes redes de farmácias e drogarias, o que facilita o acesso dos pacientes, e proporciona uma maior aderência ao tratamento, por não ser necessário esperar o período de importação.

“A Endogen surgiu da junção de algumas empresas que já tinham produtos da área de nutrição, com a Zion Medpharma, que é uma empresa que trabalha com cannabis medicinal há mais de um ano aqui no Brasil. Nós importamos o produto da Suíça, então tem um grau farmacêutico, boas práticas de fabricação da Suíça, e que também respeitam as normas aqui do Brasil”, acrescenta Kali.

Ramificações do mercado: a Cannabis além de medicamento

Uma das iniciativas da Endogen é levar informação e capacitação para médicos, além de ajudar a desmistificar o mercado, ainda rodeado de preconceitos.

A empresa patrocina atletas como Fernando Paternostro, que além de competir o Ironman, é empresário da cannabis. Fernando teve o primeiro contato com a planta enquanto morava em Barcelona, na Espanha, onde o cultivo é permitido. Indo a feiras e congressos, Fernando começou a se aprofundar no setor.

Depois de investir no mercado da cannabis nos Estados Unidos, Fernando observou uma tendência de crescimento, e voltou o olhar para o mercado brasileiro.

“Aqui no Brasil, a gente acabou constituindo juntos o primeiro fundo de investimentos voltado para a cannabis, que se chama Greenfield Global Opportunities”, detalha.

Com idas a plantações, laboratórios de extração e visitas a startups americanas, o atleta identificou um crescimento muito forte do uso da cannabis de forma preventiva e associada à prática de atividade física.

Com isso surgiu a comunidade Atleta Cannabis, e o MyGrazz, o primeiro aplicativo de cannabis medicinal do Brasil.

“Hoje meu principal foco é levar informação sobre a cannabis. Eu faço muita capacitação de médicos, a gente organiza os workshops para capacitar cada vez mais os profissionais para que eles possam decidir e ter a cannabis como mais uma ferramenta no arsenal à disposição”, alega Fernando.

Em casos específicos, pessoas físicas conseguem adquirir o direito de cultivar a planta em casa para uso medicinal próprio, assim como as associações.

Erik é professor de Endocanabinologia e pesquisador do uso veterinário da Cannabis e do cânhamo – Foto: Erik Amazonas/UFSC/ND

O professor de Endocanabinologia e idealizador do Podican – Pólo de Desenvolvimento e Inovação em Cannabis da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Erik Amazonas, conquistou este direito de forma judicial.

Desde novembro de 2022, ele possui autorização como pesquisador e para fins de pesquisa, de cultivar a cannabis em um espaço destinado aos estudos no campus de Curitibanos da UFSC.

O desmonte da burocracia

O que para a Tek Trade, em Santa Catarina, é um processo burocrático e demorado, para a HempMeds que está há 14 anos no mercado, já é um processo muito mais simples, a média de entrega do medicamento ao paciente, já a partir da receita, é de dez dias corridos.

O atendimento é direto com o paciente, que traz a receita médica à HempMeds, a partir disso, o processo é com a equipe de acolhimento. André Bissoli explica que da receita ao acesso do medicamento são apenas três etapas.

“Pode parecer complexo e burocrático, mas na realidade não é. O primeiro passo é obter a receita médica, tudo depende do médico, o profissional é crucial para saber a dose que você deve tomar e fará o acompanhamento de cada caso. Com a receita, o paciente entra em contato com a HempMeds, da forma que preferir, hoje o maior canal é por WhatsApp e nossa equipe de acolhedores faz todo resto”, salienta.

A equipe faz a documentação de autorização da importação e o embarque dela, o link de pagamento é enviado por WhatsApp. “Nós tivemos avanços junto a Anvisa e hoje esse processo dura minutos. Se o paciente chegar com a receita agora, em 10 minutos a gente já pode preparar tudo e fazer o embarque. A burocracia esta muito mais na cabeça das pessoas”, finaliza Bissoli.

O que é cientificamente comprovado

Através de um grupo da comunidade do TEA (Transtorno do Espectro Autista) em Brusque, no Vale do Itajaí catarinense, Dinara Azevedo, de 35 anos, soube da eficiência do tratamento a base de canabidiol.

Entre outros diagnósticos, Dinara trata depressão, transtorno de ansiedade, TEA, endometriose e fibromialgia. O psiquiatra dela receitou CBD e em 45 dias, teve progresso nos sintomas, a ponto de poder deixar de tomar uma medicação sintética que tomava há 2 anos para insônia.

“O efeito é muito rápido, não tem período de adaptação no organismo, por ser natural, eu tomo na versão em óleo por gotas sublinguais. Nestes 45 dias eu percebi melhoras na insônia, tanto que consegui tirar uma das medicações convencionais, percebi estar mais calma e estável quanto a ansiedade e as crises de fibromialgia tem diminuído a frequência”, destaca Dinara.

Ela, é apenas um caso entre os mais de 187 mil pacientes que usam medicamentos a base de cannabis no Brasil. Entre as pesquisas mais avançadas esta o tratamento de epilepsia e dor, seguidos por depressão, TEA e até câncer.

A médica Andrea Baumgarten, explica que, além dos sistemas internos como o imune e o nervoso, há também o endocanabinoide, que possui uma molécula semelhante a da cannabis medicinal e é responsável pelos equilíbrios de comer, dormir, descansar e relaxar.

“A grande maioria das doenças crônicas se dá por uma condição em que a gente sai da normalidade, que desorganiza e exauri esse sistema, então quando a gente passa por uma situação de stress, o corpo vai liberar um monte de endocanabinoides, inclusive a gente tem canabinóides em vários outros alimentos, a atividade física aumenta a produção endógena do nosso sistema. Então todas as doenças inflamatórias crônicas, como a depressão, a ansiedade, Alzheimer, câncer, doenças autoimunes entre outras, têm relação com a desorganização desse sistema”, explica Baumgarten.

Ela destaca que há inúmeros trabalhos mostrando grande benefício para epilepsia e dor, que são as doenças mais tratadas com medicamentos a base de cannabis.

TEA, ansiedade, câncer, fibromialgia, estresse pós traumático e tourette- síndrome neurológica em que a pessoa não consegue ter controle sobre as expressões- também possuem um nível alto de pesquisa, de acordo com Baumgarten.

Há um nível de evidência médio para Parkinson, Alzheimer, doenças inflamatórias intestinais como doença de Crohn e Retocolite, insônia, endometriose.

Existe ainda um nível mais baixo- relacionados a experiências clínicas e opinião de especialistas- que pode ser encontrado na aplicação para obesidade, Covid-19, depressão, entre outras doenças autoimunes.

Como a cannabis medicinal age no organismo

O médico Marcos Pereira relata que, em seu consultório, os casos mais frequentes de tratamento com cannabis medicinal são de dor crônica, ansiedade e distúrbios do sono. Ele explica que a cannabis age como um “gerenciador” no organismo.

“Eu gosto de associar a cannabis como um ‘gerente’, um ‘gerenciador’ do organismo. A cannabis não é um anti-inflamatório, ela é uma moduladora, equilibradora do processo inflamatório. Ela não deixa a inflamação e a dor serem exageradas. Ela torna esses eventos dentro do aceitável, que seja bom para o organismo, assim como o organismo criou”, descreve.

Marcos afirma que os processos inflamatórios são necessários no organismo, e responsáveis pelas trocas de tecidos, renovação e defesas. Porém, o problema ocorre quando a inflamação existe de forma exagerada.

Estudos acerca da cannabis medicinal avançam em SC e no Brasil

Com os avanços de estudos científicos acerca da cannabis medicinal, mercado avança em SC e no Brasil – Foto: divulgação, ND

É aí que entra a cannabis, como uma ferramenta que equilibra os processos inflamatórios, mas não os interrompe.

“Por isso que ela não é utilizada de forma aguda, por exemplo: dei uma topada na parede e estou ‘morrendo’ de dor. Que seja um remédio de farmácia nesse momento, que vai acabar com a inflamação que está muito intensa”, afirma o médico.

A cannabis medicinal, contudo, não necessariamente trata as causas da inflamação, alega o médico. “A causa cabe ao médico e ao paciente estudar, talvez com outros exames, e começar a pensar em tratar. Você tem que tratar as causas para que o paciente fique curado. Nesse momento, para dar o conforto, a gente usa a cannabis, para equilibrar esse processo”, diz.

O interesse do médico ortopedista por compreender e receitar a cannabis medicinal surgiu após uma experiência pessoal. Em 2017, a mãe dele foi diagnosticada com Alzheimer, e não estava apresentando uma boa resposta com o tratamento tradicional.

Ao pesquisar em fóruns de tratamento de Alzheimer, Marcos viu diversas menções a cannabis. A partir daí, de forma quase que “autodidata”, ele começou a estudar sobre o uso da cannabis medicinal.

“Tem muito pouco na literatura, você tem que procurar através de artigos científicos geralmente, não tem livros, não tem na literatura da faculdade de medicina nada sobre cannabis. E eu comecei a gostar do que estava vendo, e comecei a aplicar na minha própria mãezinha”, relembra.

Marcos detalha que viu uma melhora considerável no quadro dela, especialmente na parte comportamental. Ela teve melhoras no humor e no bem-estar, o que representa um grande avanço no tratamento. Desde então, Marcos segue realizando o tratamento com cannabis com a própria mãe.

O atleta e empresário da cannabis Fernando Paternostro, além de se interessar e desenvolver projetos no mercado, é paciente de cannabis medicinal.

O uso do medicamento teve início após Fernando ingressar no mundo do triathlon. Ao iniciar os treinos de natação, bicicleta e corrida, associados a fortalecimento, as lesões começaram a aparecer.

“Eu tive muita canelite, tive muita fascite plantar, comecei a ter muitas complicações. E eu já sabia que a cannabis ajudava muito nessa parte”, relembra o atleta.

Aos 43 anos, Fernando é triatleta, e afirma que foi o uso do produto que o possibilitou competir. Ele relata a visível diminuição da ansiedade, especialmente perto das provas, além de melhora da recuperação muscular, do apetite, e principalmente da qualidade do sono.

“Eu durmo muito bem. Não durmo mais do que eu dormia antes, mas eu durmo com muita qualidade. O meu ciclo de sono REM, por exemplo, está em torno de 1h30, enquanto que a maioria das pessoas têm de 20 a 30 minutos”, afirma Fernando.

É legal?

O uso da cannabis medicinal passou por uma trajetória de mudanças na legislação desde o paciente zero no Brasil. Desde 2015, o CBD não está mais na lista de substâncias proibidas pela Anvisa. Em 2016, as primeiras famílias conseguiram o direito do plantio e extração por meio da Justiça.

No ano seguinte, o primeiro produto a base de CBD e THC, de origem inglesa, foi aprovado para comercialização no país. Em 2020, o primeiro produto brasileiro foi autorizado para venda nas principais farmácias do país, com receita do tipo B.

Dessa forma, tanto a venda de produtos em farmácias como a importação de medicamentos a base de cannabis é legalizada atualmente no país. Já o cultivo da planta em território nacional é proibido, salvo exceções em que autorizações judiciais são concedidas.

Cannabis medicinal passa a ser aceita como formas de tratamento

Breve contexto histórico e jurídico da cannabis medicinal – Foto: Close Up International/Cannabis&Saúde

“Apesar da lei de 2006 ter no segundo artigo uma previsão de que para fins medicinais poderia o Estado brasileiro permitir o cultivo, exclusivamente para esse fim, a gente não tem ninguém autorizado oficialmente via alguma instituição como Anvisa, Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária), alguma instituição federal, que não com uma decisão judicial. Todo mundo no Brasil que cultiva, seja universidade ou associação, ou uma pessoa física, um paciente, todos eles cultivam a partir de decisões em alguma instância do jurídico ou do direito”, detalha o professor da UFSC, Erik Amazonas.

No caso da UFSC, a autorização veio por meio de um habeas corpus com salvo conduto. Erik solicitou para a Anvisa e para o Mapa o direito de cultivar via universidade durante quatro anos, e teve os pedidos negados.

Professor conquistou o direito de cultivar a cannabis dentro da instituição para fins de pesquisa – Foto: Erik Amazonas/UFSC/ND

Com assistência judicial, Erik entrou com pedido de habeas corpus em 2021, e em 2022 teve ele concedido. Erik possui autorização como pessoa física, mas na qualidade de professor e pesquisador.

Como se tratava de fins de pesquisa, a juíza entendeu que ele iria precisar da infraestrutura na instituição, que foi montada de acordo com as necessidades.

“Então a gente tem esse direito agora de, enquanto durarem as pesquisas, cultivar de acordo com o número e as qualidades necessárias para desenvolver essas pesquisas científicas”, explica.

O que é ético

Para Baumgarten, há um consenso médico em que são utilizados como primeira opção medicamentos convencionais que possuem mais estudos e, por isso, evidências científicas que funcionam. A Cannabis medicinal entra como uma das últimas opções, mesmo – em alguns casos- estudos recentes apontarem mais eficiência.

“É o que chamamos de uso compansivo, o que significa que não será nossa primeira opção, por haver outros trabalhos mais clássicos e antigos, os quais temos mais experiência classicamente com essas outras substâncias, mas não significa dizer que a gente não tem trabalhos mais novos mostrando superioridade da cannabis para estas condições, mas por uma questão ética, a gente nunca lança mão como primeira escolha, pois eticamente a gente pensa, bom, em time que esta ganhando não vou mexer”, destaca Baumgarten.

“Entretanto, a gente esbarra em outra questão ética, que é: se eu tenho trabalhos recentes mostrando superioridade desta técnica, porque que eu também não posso associar esta técnica, ajustando expectativas com o meu paciente, e a gente estando consciente de todas estas questões?”, questiona a médica.

Medicina x Indústria

Pela popularização dos avanços econômicos e científicos em torno da cannabis medicinal- além da difusão do tema na mídia- os médicos esbarram em um paradoxo: não se deixar levar pelo preconceito, mas também não chancelar a receita médica por uma indústria ou simples curiosidade do paciente.

“Algo muito importante mesmo é: uma coisa é eu com minha camiseta de médica prescrever um medicamento. Agora que a cannabis virou ‘geral’, nós médicos não devemos deixar a indústria reger às nossas prescrições, não é porque tem uma indústria que está fazendo pressão que nós vamos deixar de lado todo o estudo e compromisso com o ajuste de expectativas. Existe até a expressão ‘ouro-verde’ relativa à cannabis”, enfatiza a profissional.

Longe de ser milagrosa

A médica também alerta para a ilusão de que a cannabis medicinal é milagrosa e que funciona para todas as pessoas em todos os casos. “Melhora muito, traz resultados impressionantes para muitos, mas não para todos. Então é fundamental que haja o ajuste de expectativas e que isso não seja resolvido no modo ‘a qualquer custo’, no sentido de comprar em qualquer lugar, nem usar de qualquer jeito. É a gente ter rigor e não deixar a indústria ditar como a cannabis será usada”, reforça.

Ainda de acordo com a médica, é interessante que a comunidade médica se abra para que novas pesquisas sejam feitas, desde que não achem que é a cura para tudo. “Nós usamos cannabis para algumas dores e às vezes não obtemos resultado nenhum, diferente das expectativas”, conclui.

“O SUS é meu maior cliente”

Por não haver a disponibilidade de medicamentos a base de cannabis no SUS- exceto por ordens judiciais- o caminho é a área privada ou a ajuda de associações que comercializam os medicamentos por um custo mais acessível.

Apesar dos valores estarem em queda ano após ano- com a facilitação do processo por meio da Anvisa- se comparado ao salário mínimo, os medicamentos a base de cannabis ainda contam com valor elevado, como explica André Bissoli Guerini, Diretor da HempMeds.

“O SUS é o meu maior cliente. Porque pacientes hipossuficientes buscam o direito de ter acesso aos medicamentos custeado pelo Estado. Já há decisões judiciais do fornecimento por parte da união, dos órgãos federativos ou do próprio município para o fornecimento desse produto, é uma saída, mesmo que demorada e burocrática”, salienta Bissoli.

Entretanto, de acordo com Bissoli, é difícil especificar o custo médio de medicamentos a base de cannabis ou quanto custaria um tratamento, pois varia muito quanto a patologia, das doses diárias do paciente ou qual tipo de produto ele toma.

“Eu poderia dizer que existem pacientes que com um frasco de R$ 600 usam de 3 a 6 meses, já tem pacientes que usam frascos nesse valor quase que por dia, essa é a realidade”, salienta.

Porém, ano após ano, com a abertura de mercado- já são mais de 200 empresas comercializando canabidiol no Brasil- ocorre uma redução significativa nos custos.

“Já em relação aos pacientes carentes, há cotas sociais, somos flexíveis e tentamos entender qual o momento do paciente, claro, por sermos uma empresa, não damos nenhum tipo de consultoria jurídica nem nada, mas damos descontos”, finaliza Bissoli.

Alto custo

O alto custo do medicamento, ainda que em queda nos últimos anos e já com uma maior oferta de dosagens e marcas comparado ao início do mercado, ainda é um dos fatores limitadores do crescimento da cannabis como um tratamento adotado pelos pacientes.

O médico Marcos Pereira afirma que, junto ao preconceito e a falta de capacitação dos médicos para o uso, o preço é um dos pontos que ainda impede o mercado da cannabis de crescer.

“Se você for ver, o alto custo está ligado ao preconceito. Porque pensa, em um país tropical, com fama de que tudo que a gente planta aqui cresce, estamos deixando o mundo inteiro plantar, e estamos tendo que comprar deles para a nossa população”, afirma Marcos.

Com isso, o valor pago pelos produtos no Brasil inclui a expertise e tecnologia importada, além do transporte.

O médico avalia que o crescimento do setor nos próximos anos e reconhecimento do Brasil como um possível expoente do mercado poderia resultar em uma grande geração de empregos em futuras plantações de cannabis.

Além disso, o custo do tratamento poderia ser ainda mais reduzido, facilitando o acesso ao público e gerando maior competividade entre produtos, com a possibilidade de até mesmo exportar os produtos brasileiros.

“Mas enquanto tem essa briga ainda de se é droga, se não é droga, outros países já adotaram essa posição. Estamos perdendo tempo, a gente pode chegar depois atrasado no mercado”, finaliza.

Kali Nardino, da Endogen, afirma que o produto de 10ml da marca disponível hoje nas farmácias, do extrato completo da planta, é vendido por R$ 450.

“Nós sabemos que ainda é só uma parcela da população que consegue ter acesso a esse produto, mas também a gente sabe que comparado a muitos produtos que são importados, que chegam na casa de R$ 1 mil, R$ 2 mil reais, a gente tem um preço muito competitivo”, reflete.

Recentemente, a empresa recebeu aprovação para a comercialização de um frasco com 30ml, o que deve baratear ainda mais o preço por dose, tornando o medicamento mais acessível.

“Aguardamos agora a revisão de uma resoluções da Anvisa, que é a RDC327, para que a gente possa fazer mais estudos clínicos no Brasil, e dar acesso a mais pacientes com nossos produtos”, explica.

Outros sete produtos da empresa estão em protocolo na Anvisa, e, quando liberados, devem oferecer mais alternativas ao consumidor nas farmácias e drogarias, com uma melhor relação custo benefício.

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