Fé no ‘anjo da guarda’: péssima estrutura do Hospital Infantil ameaça a saúde de crianças em SC

“Caos, desumano, degradante e abandonado”. Esses são alguns dos termos utilizados pela direção do HIJG (Hospital Infantil Joana de Gusmão) ao detalhar a situação da instituição – que é a maior referência em atendimentos pediátricos de média a alta complexidade no Estado de Santa Catarina- para a equipe do Grupo ND.

Pai e filhas esperam resultado de exames realocados em maca no corredor da emergência do HIJG – Foto: Jonata Machado/Reprodução NDTV

Ao longo dos mais de 22,4 mil metros quadrados da estrutura, o cenário é de paredes com infiltração e goteiras caindo do teto. São diversos baldes espalhados pelos setores para absorver as ‘chuvas internas’ do hospital. A água por fora da parede cultiva mofo e fungos, e acumula dentro do concreto fazendo a estrutura pesar mais do que deveria.

O atual diretor da instituição, Dr. Levy Hermes Rau, assumiu o cargo no início do ano. Ele destaca o choque que foi receber a unidade em condições tão precárias. “As reformas estruturais são urgentes”.

No dia 2 de janeiro, a direção do HIJG organizou o ‘Marco Zero’, um relatório de toda a situação calamitosa em que o hospital foi entregue. “Estava o caos. Com certeza esse documento impactou o governo do Estado”, afirma o diretor.

São mais de 3 mil imagens das deficiências do hospital. Na visita ao HIJG, a equipe do NDI (Núcleo de Dados e Investigação do Grupo ND) andou por mais de 4 horas por diversos setores para acompanhar essa realidade.

Ao longo de todo o ambulatório, mães esperam por horas em um local não climatizado e desconfortável.

Uma delas é a dona de casa Tatiane Costa, de Tijucas, que chegou no local às 8h para levar o filho Enzo a uma cirurgia. Por volta das 13h30, ela recebeu a informação de que o procedimento seria realizado somente às 15h.

O cenário de improviso é visto até dentro dos banheiros. O fraldário, por exemplo, é uma mesa de escritório.

O trabalho de limpeza é incessante, já que não para de cair pó de madeira do teto que, em boa parte, está cedendo pelos cupins.

No setor da emergência, pais e filhos aguardam pelo atendimento e resultados de exames em macas alocadas nos corredores, por falta de leitos e espaço apertado.

Essa é uma das áreas mais críticas de todo o hospital, na visão do diretor Levy Hermes. Há problemas nas portas, pisos, paredes e em toda a climatização e fiação.

Há apenas dois lavabos disponíveis para todos os pacientes, em uma porta tão estreita que não dá acesso para quem está em uma cadeira de rodas, por exemplo. Logo em frente ao setor, fica uma capela, que chegou a ser utilizada para atendimentos em casos de superlotação.

Encharcado e sem climatização, fungos na estrutura do HIJG ajudam a aumentar taxa de óbitos

O diretor Levy Hermes destaca que o percentual de cura do HIJG é alto apesar de todos os empecilhos que só colaboram com as doenças.

“Temos um nível de excelência muito em parte do apoio da sociedade civil organizada e da competência dos nossos profissionais, que trabalham em situações adversas. Tanto é que boa parte dos óbitos que ocorrem aqui têm ligação com complicações por conta dos fungos”, relata.

Os números do hospital mostram que a maior parte dos atendimentos foram na pediatria respiratória. Em 2022, foram 46 mil atendimentos, o que corresponde a mais da metade dos 88 mil atendimentos realizados no ano em toda a emergência.

Direção elaborou o documento ‘Marco Zero’ para detalhar a precariedade do Hospital Infantil - Jonata Machado/Reprodução NDTV
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Direção elaborou o documento ‘Marco Zero’ para detalhar a precariedade do Hospital Infantil – Jonata Machado/Reprodução NDTV

Fios soltos, umidade, mofo. É o retrato presente na maior parte das paredes do Hospital Infantil - Jonata Machado/Reprodução NDTV
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Fios soltos, umidade, mofo. É o retrato presente na maior parte das paredes do Hospital Infantil – Jonata Machado/Reprodução NDTV

Estrutura leva riscos de choque elétrico a funcionários e pacientes - Jonata Machado/Reprodução NDTV
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Estrutura leva riscos de choque elétrico a funcionários e pacientes – Jonata Machado/Reprodução NDTV

Em um ambiente afetado pela umidade, os fungos e o mofo, aliados com a dificuldade de climatização, promovem ainda mais desafios para os profissionais de saúde.

O Hospital Infantil conta com um movimento intenso e diário de crianças de todas as partes do Estado. A média é de 14,7 mil atendimentos por mês entre a emergência externa e o ambulatório. Em 2022, ao todo foram 5,7 mil cirurgias e mais de 145 mil atendimentos de imagem e laboratório, como raio-x e ultrassonografias. No último ano, foram registrados 76 óbitos.

“O Hospital Infantil ainda não pegou fogo por causa do anjo da guarda dessas crianças”

O quadro de energia do HIJG é um dos pontos alarmantes da estrutura. Assim como as tubulações, que estão corroídas. Em vários pedaços do prédio, o teto com frestas de madeira permite enxergar a fiação e os tubos em estado precário. Quando chove, de acordo com a direção do hospital, cai muita água dentro do hospital ao longo desses canos. O próprio piso é um retrato disso: a água que cai oxidada já criou várias manchas pelo chão.

Questionado sobre o risco de incêndio, o diretor Levy Hermes responde: “É bastante arriscado. O Hospital Infantil só não pegou fogo ainda por causa do anjo da guarda dessas crianças”. Segundo ele, a queda de energia tem sido recorrente. E nesses casos, há problemas com o gerador.

“Tem que ficar girando a chave duas, três vezes. Igual um Chevette. Aí você imagina essa situação enquanto tem crianças entubadas, como ficam os respiradores?”, pontua o diretor.

Mas como um hospital consegue funcionar em condições tão arriscadas? De acordo com o gerente de enfermagem, Dr. Ivan Luiz Cunha, hoje em dia seria “impossível” o hospital conseguir um alvará geral. “Se fosse particular, não estava funcionando há muito tempo”, diz.

A equipe explica que, por conta de ser uma referência praticamente única para muitos pacientes no Estado, é muito difícil que uma instituição do estado seja fechada. Por isso essas condições vão se protelando. “É aquele caso, ruim com ele, pior sem ele”, diz Ivan Cunha.

Especialidades cresceram, espaço diminuiu

Em 45 anos de funcionamento, as demandas e as especialidades do HIJG foram só aumentando. No entanto, não houve ampliação de espaço suficiente para isso.

Pior ainda, as deficiências de gestão ao longo de décadas só fizeram o hospital diminuir. Um setor que hoje seria para a cardiologia, teve uma obra abandonada.

Isso porque a empresa contratada não deu conta de uma reforma tão grande, explica o diretor Levy Hermes, no que classifica como uma grave falha de gestão. Agora o espaço está fechado e é utilizado como hidratação, por conta da dengue.

A falta de espaço também resulta em “salas que não existem”. O setor da nutrição é um dos exemplos. Ele é localizado em um apertado “puxadinho” embaixo de uma rampa.

O aumento populacional em Florianópolis e no resto do Estado também é considerável nesse intervalo. Para se ter uma ideia, na década de 70 a Capital tinha cerca de 140 mil habitantes. Hoje a população está acima dos 500 mil.

Por isso, o aumento da oferta de leitos e espaço adequado é um dos pontos fundamentais para as reformas do HIJG.

Histórico descaso deixa os profissionais desconfiados, e se tornam ‘mestres da gambiarra’

Ao lado do diretor do hospital durante todo o trajeto, é possível testemunhar as conversas com enfermeiros e membros da equipe médica. Havia uma pergunta que sempre se repetia: “Será que agora vai?”

“Há um descaso decano com a saúde do Estado. A verdade bem clara é que dificilmente havia diálogo entre os diretores, a secretaria e o governo do Estado. As direções só iam tocando como dava. E muitos profissionais estão aqui há muito tempo, eles sabem que é muito difícil vir investimentos”, avalia Levy.

O diretor revela que, no pouco tempo que está no cargo, já entrou até em atrito com parte da equipe. “Eles se tornaram ‘mestre das gambiarras’. Porque muitas vezes tem que se resolver as coisas da forma que pode, né? Mas eu não tenho como não entrar em convulsão ao ver essas paredes desse jeito”, aponta.

Sala de espera tem cadeiras faltando - Jonata Machado/Reprodução NDTV
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Sala de espera tem cadeiras faltando – Jonata Machado/Reprodução NDTV

Goteiras são tão comuns que os setores tem baldes e avisos de piso molhado - Jonata Machado/Reprodução NDTV
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Goteiras são tão comuns que os setores tem baldes e avisos de piso molhado – Jonata Machado/Reprodução NDTV

Área recreativa tem “100% de infiltração”

Na brinquedoteca do HIJG, que fica em uma área externa, há um jardim e brinquedos para as crianças, para ajudar na sua recuperação. Porém, as poças d’água são mais comuns que qualquer coisa por lá.

Segundo o diretor, há 100% de infiltração na área. Os aparelhos de ar condicionado pingam por toda a área externa. A dona de casa Eudiclésia acompanha a filha Ellyz, de 3 anos, no espaço.

Há um mês no hospital, Ellyz brinca em um dos cavalinhos de plástico. “Ela gosta de ir nas casinhas, mas eu proibí por causa dos fungos”, relata a mãe.

Experiência ‘desumana’ e ‘degradante’

Eudiclésia e Ellyz estão em um quarto que deveria abrigar até 4 pessoas, mas tem 8. O banheiro único é destinado apenas para os pacientes. Eudiclésia, no caso, precisa ir até o andar de baixo.

E por lá, encontra uma situação “desumana”, nas palavras do gerente de enfermagem Ivan Cunha. “É bem ruim… a porta não fecha, já passei por situação constrangedora de um homem abrir e nem saber que era um banheiro feminino”, conta a mãe.

No local, há diversos boxes para banho. Difícil é encontrar um que tenha chuveiro e porta.

A fiação exposta também transmite riscos de choque elétrico, e os canos que saem do refeitório na parte de cima costumam pingar bem perto da área. O gerente de enfermagem observa que “quanto mais desce a hierarquia, mais precária é a situação”.

Sistema de Verificação de Óbitos fica no Hospital Infantil

Logo ao lado da entrada de visitantes e em um local de movimentação de funcionários e ambulâncias, está situado o SVO (Sistema de Verificação de Óbitos) de toda Florianópolis.

Ou seja, todos os corpos da Capital obrigatoriamente passam por ali. Um trânsito diário de cadáveres em uma região exposta do Hospital Infantil.

“É um absurdo que não faz sentido. Causa um estresse ainda maior para todos”, diz o gerente de enfermagem Ivan Cunha.

Um dos itens da lista de reformas urgentes para o HIJG é justamente a transferência do SVO para um local adequado. A previsão é que seja construída uma unidade própria para o serviço em um novo terreno.

Depósito vira criadouro de ratos e baratas

Na parte externa, entre o SVO e os geradores do hospital, uma porta de ferro leva até um depósito.

Mas o cenário é de um lixão. Por lá está todo o tipo de descarte, incluindo muita madeira e itens que viram verdadeiros criadouros de ratos e baratas.

“E realmente temos muitos casos aqui. Hoje mesmo, recebi a informação que uma funcionária foi atacada no peito por um rato. Essa é a situação desumana que essas pessoas são colocadas”, revela o gerente de enfermagem Ivan Luiz Cunha.

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