“ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ”: Em artigo de opinião, Daniel Luiz Miranda reflete sobre uma sociedade que tem dificuldade em admitir o erro

Dizer que o futebol é uma paixão do Brasil é repetir algo já bem estabelecido. O que nem todos parecem perceber é o tamanho da força do esporte nas massas e a intimidade com que se relaciona com questões sociais primárias das terras tupiniquins – quem sabe uma leitura do primeiro texto deste blog ajude a elucidar um pouco o tema. O fato é que, pessoalmente, poderia usar memórias muito queridas para explicar a felicidade de ver duas partidas como Manchester City 4 x 1 Arsenal, praticamente decidindo o título inglês, e Flamengo 8 x 2 Maringá, corrigindo o acidente de percurso da primeira peleja válida pela Copa do Brasil, no Paraná, no mesmo dia.

Mas futebol é muito mais do que estádios, torcidas, gols e títulos. É muito mais do que a dualidade vencedor-derrotado. Ha situações em que todos perdemos.

Meu pai tem 61 anos, é cristão praticante há quase 30 anos e carrega em si marcas de uma masculinidade implacável construída ao longo de toda vida como brasileiro – algo que eu e todos os homens, em maior ou menor grau, também mostramos. Na atual conjectura, meu pai completa o “bingo” de onde se pode esperar opiniões sociais polêmicas, ora desajeitadas, por vezes completamente equivocadas. E acontece. Acontece comigo também. Mas me chamou a atenção assistir sua reação enquanto miravamos a comemoração do elenco corinthiano após a vitória sobre o Remo, nos pênaltis, garantindo vaga entre os 16 times que jogam a próxima fase da Copa do Brasil. Me deixe contextualizar.

Em 1987 – ano que só me causa dores de cabeça – o Grêmio de Foot-ball Porto Alegrense viajava à Suíça para uma rápida passagem de preparação. Alexi Stival, o Cuca, renomado treinador brasileiro, então com 24 anos de idade e acompanhado de outros três atletas tricolores, foi acusado de ser um dos autores do estupro coletivo da menor Sandra Pfäffli, de 13 anos, no apartamento 204 do Hotel Metrópole, em Berna, no tenebroso acontecimento que ficou conhecido como “Escândalo de Berna”.

O caso voltou ao cenário popular após a contratação de Cuca como treinador da equipe com a segunda maior torcida do país, o Corinthians, tradicional por seu envolvimento político em causas brasileiras fundamentais, principalmente o movimento por eleições diretas, na década de 80, num momento em que o Brasil buscava superar o que seriam mais de 20 anos de ditadura militar. Cuca se viu em meio a uma forte resistência da torcida alvinegra, notas de repúdio das atletas multicampeãs do futebol feminino da equipe paulista e inúmeras matérias abordando o caso.

Em sua entrevista de apresentação como técnico do clube paulista, na última quinta-feira (20), Cuca disse que não participou do crime e que não foi reconhecido pela vítima. Em 2021, em entrevista concedida à repórter Marília Ruiz, o treinador também negou envolvimento no caso.

“Não fui julgado e culpado. Fui julgado à revelia, não estava mais no Grêmio quando houve esse julgamento com os outros rapazes. É uma coisa que eu tenho uma lembrança muito vaga, até porque não houve nada. Não houve estupro como falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, [não houve] tentativa de abuso ou coisa assim”, disse.

Ele ainda voltou a negar as acusações ao afirmar que o caso foi “investigado” e “apurado” pelas autoridades e disse não ter sido, à época, reconhecido pela vítima.

O advogado Willi Egloff, que representou a vítima de estupro de Cuca e demais jogadores do Gremio em 1987, falou, durante esta semana, sobre o caso ao UOL. Segundo ele, a defesa de Cuca é falsa, uma vez que foi, sim, reconhecido pela vítima como um dos autores do estupro. O advogado também confirmou a informação do jornal “Der Bund”, de Berna, segundo a qual o sêmen de Cuca foi encontrado na garota. Segundo ele, o exame foi realizado pelo Instituto de Medicina Legal da Universidade de Berna.

Confira mais informações sobre o “Escândalo de Berna”

Voltemos a 2023. Na madrugada desta quinta-feira (27), após liderar sua nova equipe à vitória o Remo (PA), nas penalidades, e avançar às oitavas-de-final da Copa do Brasil, Cuca deixou de ser o comandante técnico do Corinthians, em passagem que durou menos de uma semana. Ao final da partida, todos os atletas foram ao banco demonstrar apoio ao treinador, em um único abraço que maquia uma espécie de pacto macabro que muito explica os desafios sociais a serem superados no Brasil. Não comemoram com a torcida. Não levantaram uma faixa em apoio à campanha “Respeita as minas”, iniciativa do mesmo clube cujas cores defendem. Celebraram a classificação, aos sorrisos, com um condenado por estupro – de uma menina de 13 anos – que nunca pagou por seus atos.

Meu pai, ao final do jogo, disse, mais a si próprio do que a mim:

“Não gostei. Foram todos comemorar com o Cuca”. 

Uma declaração muito simples, mas que me ensinou não ser difícil. Não é, de fato, difícil, apesar das forças que nos impelem para o lado oposto, observar, aprender e melhorar. A atitude de alguém que está longe de ser perfeito, mas que busca ser mais humano hoje do que foi ontem, me marcou e me levou a escrever este texto. Onde foi parar nossa capacidade, homens, de autoavaliação? A queda de Cuca poderia ter sido evitada, caso assumisse publicamente sua dívida com a sociedade, admitindo sua comprovada participação em um episódio horroroso e colaborando para a solução do crime grotesco. Faltou muita coisa para Cuca.

Por fim, como escreveu o jornalista corinthiano Juca Kfouri, o pedido de demissão feito pelo treinador parece ser a resposta de um país que tenta reagir. Para mim, uma hercúlea vitória do jornalismo sério e comprometido, que, muito tardiamente, tratou de expor os fatos e tentar reparar um equívoco que vem sendo repetidamente cometido há quase 36 anos. A resolução deste caso é uma partida entre a sociedade que somos contra a que almejamos ser. Temos perdido o confronto, jogada após jogada, há séculos, numa daquelas situações em que todos saímos perdendo. Quem sabe seja este o início da virada.

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Um professor apaixonado e aprendiz de jornalista inquieto, buscando entender como usar a palavra e a notícia para mudar o mundo. Em meio às infinitas mazelas que nos desanimam, um soldado que ainda acredita que amar e mudar as coisas interessa mais.

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