Floripa 350: A herança inigualável do brigadeiro José da Silva Paes

“Estruturador do Brasil meridional”, como foi chamado pelo historiador Walter Piazza, o brigadeiro José da Silva Paes batiza a 14ª Brigada de Infantaria Motorizada, em Florianópolis, uma avenida em São José – e nada mais. É muito pouco para quem foi o primeiro governador da capitania de Santa Catarina, ergueu o sistema de fortalezas da Ilha na primeira metade do século 18 e intercedeu junto ao rei de Portugal pela ocupação do território com famílias de colonos açorianos, processo que mudou para sempre a configuração demográfica, social e econômica do Estado.

Há 284 anos, no dia 1º de maio de 1739, o brigadeiro chegou a Santa Catarina, quase sexagenário, na condição de administrador colonial designado pela corte de Lisboa para usar a experiência de engenheiro militar na consolidação da presença portuguesa no Sul do Brasil. Antes disso, ele projetou fortificações e obras públicas no Rio de Janeiro e em Santos (SP) e fundou a cidade de Rio Grande (1737), o primeiro povoado do futuro Estado do Rio Grande do Sul.

Ele deu início às obras da Casa do Governo – o atual Palácio Cruz e Sousa – Foto: Leo Munhoz/ND

Em território gaúcho, aliás, ele é nome de escolas, de uma rodovia e de monumentos que reconhecem sua importância como defensor de uma região fustigada pelas tropas espanholas de dom Pedro de Ceballos, que chegou a tomar Rio Grande duas vezes. Em terras catarinenses, Silva Paes foi governador de 1739 a 1749, projetou a igreja que se tornaria a catedral metropolitana de Florianópolis, construiu o sistema de defesa contra invasões e deu início às obras da Casa do Governo – o atual Palácio Cruz e Sousa, onde funciona o Museu Histórico de Santa Catarina.

Laguna foi anexada a Santa Catarina em 1742

Entre outras ações relevantes do governador da capitania estão a criação de um batalhão que se transformou em regimento de linha na Ilha e o desligamento de Laguna da capitania de São Paulo, anexada a Santa Catarina em 1742. Vale a pena reproduzir as impressões deixadas pelo navegador inglês George Anson sobre o governador, quando aqui passou, em 1740 (mantendo a grafia original):

“O Brigadeiro dom José da Silva Pais, Governador desta colônia, tem a reputação de ser um hábil engenheiro; e não se pode negar que ele entende do seu assunto, pelo menos em parte, estando certo das vantagens que a construção de algumas novas obras acarretam, […] existem ainda três outros fortes para defender a entrada do porto, nos quais ainda trabalham, não estando nenhum deles prontos. O primeiro destes fortes, chamado de São João, foi batizado numa ponta da Ilha de Santa Catarina, do lado da Ilha dos Papagaios; o segundo, em forma de meia-lua, está sobre a Ilha de Santo Antônio, e o terceiro, que parece o mais considerável e que tem o aspecto de uma fortaleza regular, está sobre uma ilha próxima do continente, no qual o Governador reside”.

Engenheiro militar é mais reverenciado no Rio Grande do Sul – Foto: Divulgação/ND

As pegadas do engenheiro militar na Ilha

Nascido em Lisboa em 25 de outubro de 1679, José da Silva Paes foi militar e engenheiro e deixou um legado de obras públicas e ações que cristalizaram seu prestígio de administrador em diferentes regiões do Brasil. Ele morreu em 1760, na cidade onde nasceu, não sem antes desempenhar novas funções públicas e privadas no país de origem. Em Santa Catarina, sua passagem pode ser ressaltada em vários tópicos:

– Foi o primeiro governador da capitania, assumindo em cumprimento a uma resolução do Conselho Ultramarino que criou um governo militar com sede na vila de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis.

– Projetou e construiu as fortalezas que constituíram o principal sistema de defesa da Ilha (Anhatomirim, São José da Ponta Grossa, ilhas de Ratones e Araçatuba). Ele teria residido em Anhatomirim, que seria, portanto, a primeira sede de governo da capitania.

– Projetou a Casa do Governo (hoje Palácio Cruz e Sousa), prédio de três seções e dois pavimentos, junto à praça central do Desterro.

– Projetou a igreja matriz da cidade, hoje catedral metropolitana, que levou 20 anos para ficar pronta (1753 a 1773).

– Solicitou ao rei de Portugal a colonização do litoral com famílias açorianas, porque, na sua definição, o vasto território era “um corpo sem alma”. Pelo menos 4.500 açorianos desembarcaram na vila do Desterro entre 1748 e 1756.

– Entrou para a história também pela dedicação à estratégia portuguesa de alargar as fronteiras do futuro país, levando-as praticamente à foz do rio da Prata. Ele chegou a participar de missões militares no Sul do continente.

– Silva Paes é personagem do livro infantil “Fortalezas da Ilha: uma visita ao passado”, lançado pela Coordenadoria das Fortalezas da Ilha de Santa Catarina, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Nas fortalezas, ele planejou os sistemas de defesa – Foto: Divulgação/ND

Palácio é uma joia incrustada no Centro da cidade

Não há data do lançamento da pedra fundamental e nem um documento comprovando o dia da entrega da obra, mas o certo é que se deve a José da Silva Paes o início da construção do casarão de dois pavimentos que viria a ser, mais tarde, o Palácio Cruz e Sousa. Pintado com cal e erguido com os materiais e as técnicas da época, o prédio era modesto e só ganhou a configuração atual na grande reforma promovida pelo governador Hercílio Luz, em seu primeiro mandato (1894-1898), já no Brasil República.

O político que construiu a primeira ponte entre Ilha e Continente, aliás, morou três vezes no edifício, porque esteve três vezes à frente dos destinos do Estado. Foi somente em 1954, quando Irineu Bornhausen construiu o Palácio da Agronômica, que os governadores deixaram de residir com as famílias no belo exemplar de arquitetura eclética – e de exterior neoclássico – que ainda encanta nativos e turistas na cidade.

O Palácio Cruz e Sousa foi mantido como sede do governo estadual até 1984, na gestão de Esperidião Amin. Em 1979, ganhou o nome atual em homenagem ao grande poeta simbolista catarinense, e em 1986 passou a ser a sede do MHSC (Museu Histórico de Santa Catarina), que antes funcionava na Casa da Alfândega.

Funcionários que recebem pessoas em visitas guiadas – e que conhecem profundamente a história do prédio – fazem questão de destacar as maravilhas que o palácio guarda, como repositório de documentos, objetos e mobiliário de mais de um século atrás, mesmo que a reforma feita por Hercílio Luz tenha descaracterizado bastante o projeto original do prédio.

A escadaria que leva do térreo ao segundo piso é de mármore de Carrara e o salão nobre tem as armas do Estado esculpidas no teto, onde também aparecem pinturas e esculturas. As paredes são verdadeiras obras de arte e há colunas em estilos que vão do neoclássico ao art-nouveau.

Primeira lâmpada acesa em Florianópolis

Tombado em 1984 como patrimônio histórico do Estado, o Palácio Cruz e Sousa é um exemplar da arquitetura eclética do final do século 19 e contém um acervo museológico com obras de arte, mobiliário, documentos impressos, medalhas, fotografias e armamentos. Uma peça interessante é a primeira lâmpada acesa em Florianópolis, quando a energia elétrica chegou à cidade, em 1910, usada na casa do governador Gustavo Richard (que não quis morar no palácio). Ela durou até 1965.

Atualmente, o Museu Histórico exibe a exposição “[Inde]pendências e seus transbordamentos no contexto catarinense”, que remete ao bicentenário da Independência do Brasil, em 2022. A parte superior, onde se encontra a maior parte do acervo bibliográfico e museológico, está fechada para restauração e inventário.

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