Rio Ratones pede socorro: moradores da região lutam por revitalização para diminuir poluição

O pescador Orlando Domingos Silva, 61 anos, é de uma família que há várias gerações tira da água o sustento e faz do excedente a poupança necessária para alguma emergência. E essa subsistência não vem do mar, mas dos peixes, camarões e crustáceos capturados no rio Ratones, que faz parte da maior bacia hidrográfica da Ilha de Santa Catarina. O que ele e seus companheiros de rancho mais sentem são os prejuízos provocados pelo assoreamento do rio, que perdeu em profundidade e ganhou em poluição, graças ao esgoto despejado no curso d’água ou que vem de um afluente, o Papaquara, que nasce mais ao norte, próximo da Vargem Grande, na SC-403.

Orlando Domingos Silva reclama que órgãos ambientais se esmeram em restringir a pesca, mas não se preocupam com quem polui rios ou constrói de forma irregular. – Foto: Léo Munhoz/ND

Hoje, com o apoio do instituto SOS Rio do Brás, os moradores do bairro lutam para devolver ao rio Ratones a navegabilidade que teve no passado, quando embarcações leves iam quase até a nascente, e para recuperar a qualidade da água, que pode garantir a volta de espécies que foram atrás de ambientes mais propícios para se reproduzir e crescer. O bairro recebeu muitos novos moradores, mas nem todos pensam na importância da preservação dos ecossistemas que cercam a bacia. Ali, além das soluções imediatas, há quem pense no futuro. “Com o rio limpo, pode-se ganhar até com o turismo, com investimentos na pesca esportiva e nos passeios de barco”, projeta o geólogo José Luiz Sardá.

Além do desassoreamento, os moradores pedem a revitalização do rio e se propõem a ajudar com ações de educação ambiental que diminuam, pela conscientização, o despejo de dejetos na água. Também pedem uma rede de esgoto, porque o tratamento adequado de efluentes reduziria a contaminação de toda a bacia. Dentro da própria Estação Ecológica de Carijós as águas do rio que desemboca perto da ponta da Daniela poderiam ser tratadas para que o esgoto não fosse até o mar ou subisse até próximo à nascente. “Há pontos no estuário do rio Ratones que já tiveram de seis a oito metros de profundidade”, diz o presidente da associação de moradores do bairro, Flávio De Mori. Hoje, na maré baixa, até um pequeno barco pode encalhar ali.

Se as tentativas de sensibilizar as autoridades custam a dar resultados, a construção de casas nos morros e de condomínios de áreas vulneráveis, que podem alagar com a maré cheia, depõe contra a qualidade de vida no bairro. Em dias de enxurradas fortes o rio sai do estuário natural, e quando há pouco volume a água salgada, essencial para a reprodução e o crescimento de animais marinhos, não chega até a parte superior do rio.

Moradores pedem combate à poluição que atinge o Rio Ratones, em Florianópolis. – Foto: Léo Munhoz/ND

Local tranquilo e lembranças do passado

Navegar numa bateira pelo rio Ratones é como voltar ao passado, porque o silêncio destoa do barulho da cidade e de suas rodovias repletas de veículos. Tainhotas saltam aqui e ali, pássaros passam rasantes, a mata ciliar atrai pela diversidade. Isso lembra para Orlando Silva, que preside a associação de pescadores do bairro, os tempos em que o rio tinha um traçado serpenteado, como convém a um curso d’água de baixio e várzea. Uma retificação feita em meados do século 20 empobreceu a vida subaquática original. Ainda anteriores, comportas também atrapalharam a entrada de peixes e prejudicaram os pescadores. Elas foram removidas, numa das raras vitórias que a comunidade teve até hoje no embate com os órgãos públicos.

Orlando Silva recorda que os moradores mesclavam a agricultura de subsistência com a pesca e era comum a produção (de peixes, grãos, lenha, hortaliças e frutas) ser levada para Santo Antônio de Lisboa, Sambaqui e o Mercado Público, em barcos e carros de boi. Também as trilhas pelos morros e pelas matas eram utilizadas para os deslocamentos e o transporte de víveres. Como seu próprio pai, que era feirante, as pessoas saíam no começo da madrugada para chegar de manhã no Centro da cidade. O retorno era outra aventura – os abnegados colonos batiam em casa só no meio da tarde.

Uma de suas queixas é que os órgãos ambientais se esmeram em proibir ou restringir fortemente a pesca, mas não se preocupam com quem polui os rios da bacia ou constrói de forma irregular. Foi-se o tempo da captura farta de camarões e peixes como a tainha, a corvina e o robalo. “Hoje, há pouco oxigênio, como ocorre também com rios no Sambaqui, Saco Grande e Capivari, sem falar do Papaquara, que está podre”, diz Orlando.

Para o geólogo José Luiz Sardá, com as águas limpas, pode-se ganhar com o turismo, com investimentos na pesca esportiva e nos passeios de barco. – Foto: Ricardo Wegrzynovsk/Divulgação/ND

Oficinas e conscientização da comunidade

Em um vídeo do instituto SOS Rio do Brás, o hidrogeólogo Rodrigo Sato explica que a dragagem que pode devolver as condições ideais ao rio consiste na remoção de sedimentos como areia, lama e detritos. Sem isso, além de prejuízos para o deslocamento de pequenas embarcações de pesca, a água perde qualidade e cresce o risco de erosão, inundações e enchentes. “Com a melhoria do ecossistema, há um aumento da biodiversidade e melhora o habitat para a fauna e a flora aquáticas”, diz ele. Sato também destaca como vantagens a valorização da paisagem e o aumento do valor dos imóveis na região, uma das partes de menor densidade demográfica na Ilha.

O presidente da associação de moradores do bairro de Ratones, Flávio de Mori, conta que oficinas e outras atividades já foram realizadas na comunidade, porque sem a conscientização qualquer ação maior, de melhoria da infraestrutura, pode dar pouco resultado. A retirada das comportas, dois anos atrás, foi um avanço para os pescadores, que passaram a correr menos riscos de acidentes e viram espécies subaquáticas retornarem ao leito do rio.

“Ainda assim, parte dos efluentes do rio Papaquara compromete a água da bacia e vai impactar também a baía Norte, em Sambaqui e Santo Antônio de Lisboa, onde há criação de mariscos”, afirma De Mori. “Temos o maior e mais bem conservado manguezal da Ilha e estamos ao lado de uma estação ecológica, mas os bancos de areia e a poluição, num local onde ainda se vive da pesca, atrapalham a comunidade”, reforça ele.

Até hoje, as tentativas de sensibilizar as autoridades estaduais e municipais para o problema do assoreamento e da poluição da bacia esbarraram na burocracia oficial. Segundo os moradores, a retificação da parte superior do rio Ratones, no século passado, atendeu a interesses particulares, de proprietários de áreas de terra na região. O pescador Orlando Silva mostra um certo desânimo com a situação da bacia, mas não desiste porque, com 33 associados, a entidade que preside agrega muitas famílias tradicionais da comunidade.

Bacia tem muitos afluentes e olhos d’água

O presidente do instituto SOS Rio do Brás, José Luiz Sardá, apoia a luta da comunidade pela dragagem do rio Ratones. Ele se reporta aos relatos do escritor Virgílio Várzea, que no ano de 1900 já falava das características ambientais e humanas do Norte da Ilha de Santa Catarina, incluindo o arraial de Ratones. O nome do local teria sido dado pelos navegadores espanhóis que aportaram na região ainda no século 16, referindo-se às duas ilhas da baía Norte (Raton Grande e Raton Pequeno, na época) que ficam entre a Ponta do Sambaqui e o Pontal da Daniela. Vistas de longe, as ilhas têm semelhança com ratos, dai a denominação, que persiste até hoje.

Sardá cita um problema no Poço das Pedras, perto da ponte da SC-402, assim designado pelos pescadores nativos “por ser um dos sítios mais fundos do rio e pelo agrupamento de rochas que toma uma das margens, onde navegavam canoas de voga, batelões, botes e lanchões de 15 a 20 toneladas, todos em contínuas viagens de comércio entre Desterro e este arraial”. Interrompido pela estrada, o poço, uma vez aberto e dragado, facilitaria o repovoamento dos rios da bacia com espécies que hoje encontram dificuldades para se reproduzir ali.

Apesar desse ambiental hostil, ainda há peixes que insistem em subir o rio para desovar. É o que acontece com as tainhas que vêm do Sul, no inverno. De acordo com o pescador Orlando Domingos Silva, as que não são capturadas procuram os rios do litoral para depositar os ovos, aproveitando a água quente e salobra. “Depois, os alevinos ganham o mar e voltam para a região onde crescem, seguindo seu curso natural”. Muitas tainhas que sobem pela orla, um ano depois, sempre atrás de lugares acolhedores para a desova, nasceram nesses pequenos rios de águas tépidas – entre eles, o Ratones.

A importância do ecossistema local pode ser medida pela quantidade de afluentes do rio Ratones. Somente no Canto do Moreira, de onde sai uma conhecida trilha para a Costa da Lagoa, foram contados 54 olhos d’água que alimentam três cachoeiras que abastecem os rios da bacia, que está apenas 1,20 metro acima do nível do mar.

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