Mulheres negras ganham menos no trabalho por conta, apontam UFSC e Ministério da Igualdade Racial

A pessoa chamada “empreendedora” é, muitas vezes, dotada de um título carregado de pompa no Brasil. Mas a quem o termo se aplica? Um em cada cinco brasileiros ativos no mercado trabalha por conta própria. São 21,5 milhões de pessoas atuando como cabeleireira, motorista de caminhão, vendedora de porta em porta, engenheiro, mecânico, psicóloga, entre outras ocupações. Mas se todos são unidos pelo selo de “empreendedores”, são também separados por desigualdades: as mulheres negras são as menos favorecidas.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o apoio do Ministério de Igualdade Racial (MIR) e em parceria com a Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro) resultou em uma cartilha que não só mostra a realidade daqueles que vivem como trabalhadores autônomos, Microempreendedores Individuais (MEIs), “PJs”, informais e outros, mas pretende ser um guia para embasar políticas públicas que reduzam injustiças.

Em síntese, segundo a cartilha, os dados mostram que “desigualdades de gênero, raça e classe influenciam diretamente na distribuição de renda no trabalho por conta própria: pessoas negras e em particular mulheres negras são mais presentes nas faixas de renda mais baixas, enquanto brancos, e sobretudo homens, prevalecem nas faixas mais altas”.

 

Gráfico animado expõe desigualdades 

Clique para acessar o recurso de animação.

A cartilha foi batizada de Desigualdades Sociais no Trabalho por Conta Própria – Análises Interseccionais de Raça, Classe e Gênero. A cartilha é baseada nos resultados de um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade com apoio do MIR – Trabalho “por conta própria” no Brasil pós-pandemia: desigualdades interseccionadas.

“No estudo, foram analisados dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-C), feita pelo IBGE, no terceiro trimestre de 2023 e de 2019. O principal objetivo do estudo foi desenvolver e interpretar a intercessão das desigualdades de raça, classe, gênero e território, e como elas operam nas 20 principais atividades do setor”, informa a cartilha.

Para facilitar a compreensão, há um gráfico animado que mostra como as atividades com rendimentos mais baixos e mais altos são ocupadas por diferentes perfis.

Algumas conclusões da cartilha

  • Entre as principais atividades na faixa de renda mais baixa (até R$ 650), quase todas as profissões são exercidas majoritariamente pela população negra.
  • Na faixa de renda que vai de R$ 1.301 a R$ 2.600, a desigualdade também predomina pelo eixo racial. As atividades simultaneamente mais masculinas e negras são as de Construção e Transporte e as mais femininas e negras são as de Costura e Beleza.
  • O eixo racial separa as atividades por completo na faixa de renda superior a R$ 5.200. As ocupações são predominantemente ocupadas por pessoas brancas. Também há concentração significativa entre homens. As profissões mais masculinas nesta faixa são de Engenharia Civil, Agricultura e Criação de Gado. Entre as mulheres brancas nesta faixa, predominam Psicólogas.
  • Homens dominam a Construção Civil (98%), Transporte e Armazenagem (94%) e Agricultura (86%), além de serem maioria em áreas como informação, comunicação, finanças e comércio. Já as mulheres são maioria nos serviços sociais, saúde, educação (68%), alojamento e alimentação (57%), e na indústria (55%).
  • A maioria dos trabalhadores por conta própria atua na economia informal (72%), com apenas 28% formalizados (boa parte como MEI).
  • A formalização é mais comum entre pessoas brancas (37%) do que entre negras (80% informais).
  • A escolaridade também influencia: 91% das atividades dos trabalhadores com menos estudo são informais, enquanto entre os que têm ensino superior completo, 51% são formalizados.

Lançamento

Resultados da pesquisa e cartilha foram apresentados em evento na UFSC (Fotos: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC)

O documento foi lançado oficialmente nesta segunda-feira, 17 de março, na UFSC, em Florianópolis. Compuseram a mesa principal do evento a Secretária Nacional de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo, Márcia Lima, representando o MIR; o pró-reitor de Pesquisa e Inovação da UFSC, Jacques Mick; a professora Thais de Souza Lapa, que coordena o Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) da UFSC e preside a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET); a coordenadora Jurídica da Reafro, Flávia Oliveira Cristina Santos; e a pesquisadora Flavia Thais Michel, que apresentou os resultados da pesquisa junto com o pesquisador Lucas Maciel Ferreira.

O evento contou com as presenças de representantes do Ministério do Trabalho em Santa Catarina, do Ministério da Igualdade Racial, do Sindicato dos Bancários, de mandatos parlamentares como a deputada Luciane Carminatti e a vereadora Carla Ayres, além de membros da comunidade acadêmica da UFSC. Após uma breve apresentação da pesquisa, feita por Flavia Thais Michel e Lucas Ferreira, as autoridades puderam debater os dados e os desdobramentos da pesquisa.

“Essa é uma pesquisa que sintetiza algo que eu acho muito importante para a construção de políticas públicas: a universidade, com o conhecimento científico, a pesquisa; a sociedade civil; e o governo. É uma maneira muito eficaz, pela escuta da sociedade civil, pela qualidade técnica da pesquisa, e pelo papel do governo federal de articular essas frentes. A partir desses resultados podemos pensar políticas públicas de inclusão no mercado de trabalho e de melhoria das condições de trabalho por conta própria”, declarou Márcia Lima.

Cartilha traz sínteses da pesquisa e pode orientar a elaboração de políticas públicas

A pesquisa foi coordenada por Jacques Mick, que na época estava à frente do Lastro, e teve consultoria de João Carlos Nogueira, que é pesquisador da UFSC e também coordenador da Reafro. Juntos, publicaram o livro Viver por Conta Própria, em 2022. Em sua fala, Jacques, que atualmente é pró-reitor de Pesquisa e Inovação, reiterou a importância da parceria com o MIR e com a Reafro na pesquisa. “Estamos procurando estimular a nossa comunidade universitária a produzir pesquisa que tenha impacto, resultados para a sociedade catarinense, para o povo brasileiro. Essa pesquisa é muito importante para nós, porque ela é feita em parceria. Não é apenas uma pesquisa que visa a olhar para problemas estruturais da sociedade catarinense e brasileira, mas também tem uma preocupação de fazer circular os seus resultados e de tornar os resultados objetos de ação política”, salientou.

Jacques detalhou o processo da pesquisa, com etapas dialogadas entre os três parceiros, com resultados partilhados e discutidos em conjunto. “Não é a Universidade produzindo a sua ciência num mundo isolado, numa bolha. É a Universidade se conectando com os atores sociais, com os agentes de governo para endereçar a sua pesquisa desde a temática voltada a problemas urgentes da sociedade brasileira”,  reforçou.

A interseccionalidade da pesquisa, com cruzamento de dados raciais, de gênero e de renda foi destacada por muitos dos participantes do evento. Segundo a professora Thaís Lapa, se percebe na vida da classe trabalhadora esses aspectos que não podem ser analisados de forma isolada. “Se formos pesquisar desigualdades de uma forma isolada, sejam as de classe social, de raça e etnia, sejam as de gênero, poderíamos incorrer em análises insuficientes”, lembrou.

Pesquisadora Flavia Thais Michel apresentou os resultados da pesquisa junto com o pesquisador Lucas Maciel Ferreira

Além disso, a divulgação dos resultados, com a produção de uma cartilha, e de gráficos com animação, ajudam a visualizar as questões que permeiam o tema. Segundo Jacques, “quando a gente enxergava os dados de maneira estática, eles já produziam um efeito pra nossa percepção do problema. Agora que a gente conseguiu encontrar uma solução de animação, a gente consegue visualizar com muito mais nitidez e o reconhecimento do problema é muito mais intuitivo”. A cartilha será distribuída em eventos acadêmicos e institucionais e está disponível online.

Houve também o compartilhamento de experiências que apareceram na pesquisa na forma de dados. A pesquisadora Thaís Michel relatou sua trajetória como mulher negra, mãe solo, com formação em nível superior e experiência de trabalho, e mesmo assim precisou trabalhar como motorista de aplicativo por não conseguir emprego.

“Eu amava a minha profissão, eu amava o que eu fazia. E nesse contexto todas as vezes que eu chegava em uma entrevista de emprego, a primeira pergunta que me faziam era: ‘O que que você vai fazer com a sua filha quando ela ficar doente? O que você vai fazer com a sua filha nas férias da escola?’ São questões que nenhum homem recebe, nenhum homem é questionado aonde estão os seus filhos, com quem estão, quem passou as suas roupas, quem vai produzir o seu alimento’”, disse a pesquisadora.

A consultora jurídica da Reafro, Flávia Santos, também compartilhou sobre sua trajetória enquanto mulher negra na área de Direito, e elogiou a pesquisa e os dados que poderão fazer eco também nas organizações que lutam pelos direitos dos trabalhadores.

Secretária Nacional de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo, Márcia Lima, representou o Ministério da Igualdade Racial

A secretária do MIR, Márcia Lima, falou sobre suas experiências de pesquisa enquanto socióloga, e em seu meio familiar, e contou sobre situações que vivenciou ao contratar trabalhadoras do cuidado quando foi necessário, e o quanto o racismo atravessa o trabalho dessas mulheres. “A empresa que precisei contratar informou que famílias recusavam pessoas pretas dentro das suas casas tocando os corpos dos seus entes queridos”, relatou.

Márcia reforçou as transformações recentes em legislações trabalhistas, mudanças no perfil etário das categorias ocupacionais, além das questões que envolvem gênero. “Essas constantes transformações envolvem uma maior heterogeneidade de categorias ocupacionais, especialmente quando se fala de um trabalhador por conta própria. Falar de desigualdade, do racismo, do sexismo que atravessam a desigualdade. Precisamos refletir se nestas categorias de trabalho, são todas as categorias que as pessoas negras vão estar”, disse. Segundo Márcia, a interseccionalidade é muito difícil de traduzir para uma observação empírica e muito mais ainda quando se fala de dados quantitativos. Mas as realidades são indissociáveis. “É uma coisa que nós, mulheres negras, conhecemos muito na vida. Aquela perguntinha ‘o que é pior, ser mulher, ou ser uma mulher negra’, como se a gente pudesse escolher, como uma roupa que eu escolho sair de manhã”, exemplificou a secretária.

Na mídia

A pesquisa foi tema de reportagem da série Antonietas, da NSC TV, veiculada nesta segunda-feira, 17 de março, no telejornal NSC Notícias.

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