Jeferson Tenório na UFSC: ‘Imaginar e fantasiar nos dias de hoje é um ato de resistência’

Escritor Jeferson Tenório durante aula magna na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

“Ler é um modo de vida. Escolher os livros é um modo de viver. Quando queremos que alguém leia algo, queremos que aquela pessoa tenha a mesma experiência estética, sentimental, afetiva e intelectual que tivemos”, afirmou o escritor Jeferson Tenório para um público de cerca de 1200 pessoas na noite de segunda-feira, 24 de março. O premiado autor proferiu a Aula Magna da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Auditório Garapuvu, no Centro de Cultura e Eventos do campus de Florianópolis, com transmissão ao vivo pelo canal no Youtube da TV UFSC. A plateia era composta por membros da comunidade interna e externa, jovens, estudantes, professores, idosos e até crianças. Houve momentos de reflexões profundas, outros para ouvir histórias, rir, cantar, se emocionar. 

O tema da Aula Magna, De onde eles vêm: uma reflexão sobre a formação de leitores no espaço acadêmico, fazia uma referência direta ao mais recente livro de Jeferson Tenório, cujo título é De onde eles vêm (Companhia das Letras, 2024), que narra a história de um estudante negro retinto que ingressa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) pelo sistema de cotas raciais logo no início de sua implementação. O personagem Joaquim sente a universidade como um ambiente hostil e de exclusão, exigindo-lhe um enorme esforço para vencer as dificuldades financeiras e a falta de acolhimento. A narrativa foi inspirada na história de vida do próprio autor, já que Jeferson Tenório foi o primeiro estudante cotista negro a se formar na UFRGS. “Esse personagem é um pouco parecido comigo e  com as pessoas com quem eu convivi durante todos esses anos. É uma mistura dessas experiências que eu tive.” 

O escritor iniciou sua palestra com uma descrição do personagem da obra: “Pensem no Joaquim como alguém que mora em um bairro periférico e já é leitor, ou seja, ele não se torna leitor na universidade, ele já vem com uma bagagem literária. É alguém que escuta rap, que gosta de Racionais. E a primeira imagem que me veio desse personagem foi ele em um ônibus lotado indo para a universidade às 7h da manhã, escutando Racionais em seus fones de ouvido. Ao chegar na universidade, ele dá de cara com uma aula sobre o livro Ulysses, do James Joyce, que é considerado um livro super difícil, inacessível. A escolha desse livro foi pensada justamente para mostrar esse contraste. Aparentemente é um contraste, mas ao longo do livro essas experiências vão se complementando.”

Escritor Jeferson Tenório durante aula magna na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

O fio condutor de sua exposição foi justamente a desconstrução do que seria a literatura e os espaços de leitura, explorando as muitas formas possíveis da experiência literária. Para o autor, a leitura não está restrita a ambientes institucionalizados. Pelo contrário: ela depende sobretudo dos vínculos afetivos que estabelecemos, dos sentimentos que mobilizamos na relação com os livros e com o outro. “Uma primeira pergunta que me fiz foi: é possível ensinar alguém a ler? Não no sentido de alfabetizar, nem no sentido de ensinar códigos e signos linguísticos, mas é possível ensinar alguém a ler literatura? É uma pergunta que eu sempre me fiz enquanto professor e depois enquanto escritor. O primeiro impulso de ensinar alguém a ler é gostar de ler. Enquanto professor de escola pública, atendendo pais, eu escutava muitos pedidos de conselhos. Como fazer que o meu filho leia mais? Aí quando eu perguntava se o pai ou a mãe gostavam de ler, eles diziam que não gostavam. O primeiro passo é gostar de ler, é se apaixonar pela leitura.”

Auditório Garapuvu lotado durante a aula magna de Jeferson Tenório na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

A leitura como experiência coletiva

Jeferson encara a leitura como uma experiência coletiva, comunitária: “Embora o primeiro movimento do leitor com o livro pareça um ato solitário – e é, em certa medida –, a leitura só se completa na partilha com o outro. É quando eu tenho essa interlocução com o outro que dou sentido àquilo que li. Eu considero que é quase uma atitude ética e cidadã a partilha de uma leitura, é quase um dever que você tem com a sociedade partilhar algo que foi tão importante, tão marcante para você. E nós precisamos desse outro para que consigamos ter de fato uma leitura significativa.”

Para o autor, a experiência da leitura não começa com o livro em si, mas sim com as mais variadas vivências mundanas. “O que significa a leitura de fato? Historicamente, no Brasil, não temos uma cultura do livro. Na Europa e nos Estados Unidos, onde as universidades existem há três ou quatro séculos, existe uma cultura do livro muito sólida. Este não é o nosso caso. Eu acho cruel exigir de uma população majoritariamente pobre que seja de grandes leitores. A nossa educação sentimental e intelectual não se deu pelos livros, se deu pela música. Nós somos ótimos leitores de música. Quantos artistas incríveis nós temos?” Neste momento, Jeferson fez referência à música Alguém me avisou, da cantora e compositora brasileira Dona Ivone Lara (1921-2018). “Vocês conhecem essa música?” Perguntou ao público, dando a deixa para cantarem juntos. Ouviu-se então um coro que parecia até ensaiado:

Foram me chamar. Eu estou aqui, o que é que há?
Foram me chamar. Eu estou aqui, o que é que há?
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho.
Mas eu vim de lá pequenininho.
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.

“Se isso não é letramento, o que mais é?”, disse ao final da cantoria coletiva, sucedida por aplausos emocionados. 

Escritor Jeferson Tenório durante aula magna na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

“Eu me tornei leitor por teimosia e também sem saber que estava me tornando leitor”, prosseguiu. Jeferson conta que começou sua vida de leitor, sem saber que já era leitor, nos terreiros de umbanda e candomblé que frequentava com sua mãe, avó e tias durante a infância. “Era um lugar que para mim parecia fantástico e ao mesmo tempo muito natural e sobrenatural, em que eu conversava com as entidades, que eram muito engraçadas, falavam um monte de palavrões e eu, enquanto criança, adorava. Essas entidades contavam histórias, narrativas que já estavam me preparando para esse universo da leitura. A leitura não começa no livro, a leitura começa com o corpo, com essa educação dos sentidos e mobilização dos afetos, para que gradualmente a gente consiga chegar em algo que é bastante sofisticado. O livro é uma tecnologia extremamente sofisticada. Não se chega no livro de qualquer forma, é preciso uma preparação.”

Escritor Jeferson Tenório durante aula magna na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

Segundo o autor, ouvir as entidades lhe permitia acessar o espaço onírico da imaginação e da fantasia. “E imaginar e fantasiar nos dias de hoje é um ato de resistência. Nada mais importante para uma comunidade negra, por exemplo, esse poder de imaginar e fantasiar seu futuro. E foi isso que eu aprendi nesses terreiros, quando fazíamos consultas com essas entidades e elas me falavam do futuro. Eu podia vislumbrar a minha vida adulta, coisa que para muitas realidades negras é algo impossível, impensável.”

Nesse contexto, Jeferson reforça a ideia de que a leitura não se dá apenas em escolas, universidades, ambientes institucionais. A leitura se dá em qualquer lugar. Para contextualizar seu argumento, o autor leu um trecho de seu livro De onde eles vêm que descreve o momento em que o personagem Joaquim compartilha a leitura de Odisseia, de Homero, com amigos não leitores, enquanto jogam sinuca em um bar. O objetivo era mostrar que o compartilhamento da leitura pode se dar nos mais diversos espaços, mesmo naqueles que, aparentemente, não sejam adequados ou propícios a esse tipo de experiência. “A leitura, para Joaquim, só faz sentido quando ele está em espaços de convivência, dessa convivência comunitária, quando ele traduz a Odisseia para os colegas em um lugar que teoricamente não seria um lugar para a leitura, não seria um lugar para escutar uma história como a Odisseia. As leituras mais significativas não se dão no ambiente acadêmico, elas se dão na vida.”

A leitura como um exercício de liberdade subjetiva e existencial

Segundo Jeferson, De onde eles vêm tem um “eco existencialista”. “Qual é a premissa do existencialismo? É aquela frase muito famosa de que a existência precede a essência. Primeiro a gente existe e depois a gente cria a nossa essência. Ou seja, não é dada uma essência a priori. Isso significa, para essa corrente filosófica, que quando você nasce, é jogado em um mundo em que precisa encontrar o seu caminho. Não tem um manual, não tem uma fórmula para que você seja quem você é. O existencialismo é justamente essa liberdade de escolher o caminho que você quer seguir com todas as consequências que essa escolha vai trazer. E essa escolha tem a ver com assumir uma responsabilidade pelos seus atos, e não delegar essa responsabilidade a alguém, seja o pai, seja a mãe ou seja Deus.”

Mas, pergunta o autor, qual seria a serventia dessa filosofia para alguém como o personagem Joaquim, que é um rapaz negro periférico? “O existencialismo lhe dá a possibilidade de ser livre, mesmo em uma sociedade nefasta e racista, lhe permite assumir a responsabilidade pelos seus atos, mesmo que o racismo incida em sua vida todos os dias. Por isso, eu não tenho um personagem exemplar. Eu tenho um personagem errante, um personagem negro que tem os seus defeitos, as suas complexidades e contradições. Eu quis um personagem que tivesse essa caminhada existencial para que pudesse ser autêntico. É isso que nos dá sentido à vida. Não é copiar o outro, mas é ser autêntico. É você conseguir ir atrás dos seus desejos e negociar com os seus desejos. No caso do Joaquim, o que sustenta a sua jornada é a literatura.”

A formação do leitor no espaço acadêmico

Jeferson defende que a formação de um leitor não se dá pela imposição de leituras, mas sim por um convite à leitura, o qual só é possível quando estabelecemos vínculos afetivos, o que nem sempre ocorre no ambiente acadêmico. “Nós precisamos desinstitucionalizar a leitura, porque essa pompa e essa seriedade da universidade afasta não só o leitor, mas a comunidade de modo geral. Só conseguimos formar leitores se estabelecermos uma proximidade para além do livro. É preciso reconhecer que a academia é um dos espaços de formação de leitores especializados, mas não é o único.”

Espetáculo da Companhia de dança da UFSC. Foto: Gustavo Diehl

Valorizando a esfera dos afetos na formação de um leitor, o autor acredita que “ensinar alguém a ler” envolve, sobretudo, “fazer com que alguém sinta o que eu senti ao ler um livro”. Ele afirma: “Sobretudo no texto literário, não podemos esquecer que a literatura é bela antes de ser verdadeira. Quando alguém busca um livro literário, ela não está atrás de uma verdade, ela está atrás de uma experiência estética. A experiência estética é a que permanece, não a experiência teórica. A experiência teórica existe somente em função da experiência estética.”

A Aula Magna foi precedida por um breve discurso do reitor Irineu Manoel de Souza e da pró-reitora de Graduação e Educação Básica (Prograd), Dilceane Carraro, seguida da apresentação de três coreografias da Companhia de Dança da UFSC, vinculada à Secretaria de Arte, Cultura e Esportes (SeCArtE/UFSC). Os bailarinos exploraram diferentes técnicas corporais da modalidade Jazz, encantando o público com momentos solo e em grupo. Após o evento, houve uma sessão de autógrafos com Jeferson Tenório, que durante uma hora e meia atendeu mais de 200 pessoas, as quais levaram um ou mais dentre os quatro livros do autor para receber uma dedicatória.

Livros

De onde eles vêm (Companhia das Letras, 2024) é o quarto romance de Jeferson Tenório. Em 2013, Jeferson publicou seu primeiro romance, O beijo na parede (Sulina, 2013), que foi premiado com o troféu “Livro do Ano” pela Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Cinco anos depois ele lançou Estela sem Deus (Zouk, 2018; Companhia das Letras, 2022) e, após outros quatro anos, veio O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), que ganhou o Prêmio Jabuti 2021 na categoria Romance Literário e o tornou conhecido em todo o Brasil e no exterior. O avesso da pele já vendeu mais de 200 mil cópias e foi publicado em diversos países, entre eles Suécia, Eslováquia, França, Espanha, Itália, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e México.

Daniela Caniçali | [email protected]

Jornalista da Agecom | UFSC

 

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