Estudo da UFSC lista microrganismos que podem adoecer trabalhadores de frigoríficos

Frigoríficos empregam quase 700 mil trabalhadores no Brasil. Foto: Agência Senado

Uma pesquisa publicada na revista científica Pegada elencou mais de 70 agentes biológicos a que os trabalhadores de frigoríficos estão expostos, entre vírus, bactérias, fungos e outros parasitas. Realizado como parte da tese de doutorado de Roberto Carlos Ruiz, médico do trabalho da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e aluno do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, sob orientação do professor Fabrício Menegon, o estudo teve o objetivo de conhecer o conjunto de doenças infecciosas que podem acometer esses trabalhadores e aponta para a necessidade de qualificação do sistema de vigilância em saúde, de alterações de normas regulamentadoras e de medidas previdenciárias relacionadas à aposentadoria especial.

A relação de agentes biológicos foi feita com base em uma ampla revisão bibliográfica, que partiu de uma seleção inicial de 714 artigos científicos publicados em português, espanhol e inglês. Após a leitura dos títulos e resumos, os pesquisadores selecionaram 81 desses artigos para análise integral – aos quais se somaram outros 30, descobertos depois. No total foram 111 estudos, realizados em diferentes países, que descreviam patógenos com potencial para transmissão animal-humanos e humanos-humanos encontrados nas indústrias de abate e processamento de carne.

“A primeira surpresa foi a quantidade de agentes biológicos que nós encontramos, foram muitos. Só fazendo uma ressalva: quando falamos em frigorífico ali no artigo, estamos falando de boi, de ave, de porco, de peixe. Então, vimos que, no conjunto, são muitos os agentes biológicos que podem afetar a saúde da pessoa que trabalha”, afirma Roberto.

Outro aspecto que chamou a atenção dos pesquisadores é que, entre os microrganismos, havia até mesmo alguns que são classificados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) como armas biológicas com potencial para bioterrorismo, como os que causam a brucelose (Brucella spp.), a tularemia (Francisella tularensis) e a Febre Q (Coxiella burnetti).

Importante ressaltar que a pesquisa não questiona a qualidade e a segurança da carne produzida nos frigoríficos. “Do ponto de vista sanitário da produção de alimentos, os frigoríficos são classe A. Os protocolos são o que há de melhor no mundo, isso a gente tem que reconhecer. Todo esse nosso olhar e a contribuição crítica que estamos fazendo é para a saúde das pessoas que trabalham, a saúde do trabalhador”, enfatiza Roberto. “O nosso padrão de qualidade da carne é classe A. O nosso problema é a exploração das pessoas. Elas são super exploradas. É terrível aquele trabalho”, reforça o médico.

Além da relevância social do tema – a indústria frigorífica é responsável por cerca de 5,7% do PIB brasileiro e emprega quase 700 mil trabalhadores diretamente no país –, a experiência profissional de Roberto influenciou a escolha pelo tema de estudo. “A gente tem contato com trabalhadores que passam aqui no HU [Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, vinculado à UFSC], e a gente vê muitos trabalhadores de frigoríficos lesionados”, comenta. Além de servidor técnico-administrativo da UFSC, o médico do trabalho assessora confederações sindicais que representam trabalhadores de frigoríficos.

Trabalhadores expostos

Os trabalhadores da indústria de abate e processamento da carne estão expostos a diversos riscos laborais durante sua jornada de trabalho. Além de acidentes de trabalho, problemas ergonômicos, devido à repetição de tarefas e ao levantamento de peso, por exemplo, riscos físicos, como os decorrentes da exposição ao frio ou a ruídos, e químicos, pelo uso de produtos diversos, essas pessoas estão especialmente sujeitas à exposição aos agentes biológicos.

Isso ocorre não só pelo contato direto com os animais. Segundo Roberto, os ambientes frios, com alta concentração de pessoas e baixa taxa de renovação do ar, somados às jornadas exaustivas, tornam os frigoríficos ambientes propícios para a propagação de vírus, bactérias e outros agentes. Esse risco, ficou bastante explícito durante a pandemia de covid-19.

“Na pandemia, ficou evidente que os frigoríficos funcionaram como espalhadores da covid”, diz o pesquisador. No início da pandemia, por exemplo, em junho de 2020, os frigoríficos concentravam um terço dos casos de covid-19 do Rio Grande do Sul. Outra situação curiosa ocorreu na mesma época em Cianorte, no Paraná. Um abatedouro de aves chegou a registrar mais casos entre seus funcionários do que o total contabilizado entre os moradores do município. A covid também deixou um rastro de mortes e sequelas em grandes frigoríficos.

Propostas para a saúde dos trabalhadores

Roberto salienta que os protocolos de segurança e saúde dos trabalhadores nos frigoríficos foram aprimorados ao longo da pandemia, mas ainda são insuficientes. Com base nos resultados do estudo, os pesquisadores propõem algumas medidas que podem trazer benefícios tanto para a saúde e o bem-estar dos trabalhadores de frigoríficos e suas famílias quanto para a população em geral.

Pensando em qualificar a vigilância em saúde do trabalhador, os cientistas defendem que as empresas enviem ao governo informações mensais sobre atestados com tempo de afastamento menor de 15 dias (atualmente, só os atestados que ultrapassam esse período são enviados ao INSS para avaliação da perícia médica) e que sejam instituídos programas de vacinação obrigatória para trabalhadores do setor, principalmente para a prevenção de doenças que afetam o trato respiratório.

Além disso, recomendam alterações em duas Normas Regulamentadoras (NR). Os pesquisadores argumentam que a obrigação legal de conhecer e listar os agentes patológicos que existem no processo produtivo da indústria da carne deve ser do poder público, e não das empresas, como ocorre atualmente. Assim, propõem um novo anexo à NR 36, que trata de segurança e saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados, com uma lista das possíveis exposições a agentes biológicos nos ambientes de frigoríficos, a exemplo do que já existe para o pessoal da saúde na NR 32. 

Outra mudança sugerida é na NR 15, que trata de atividades e operações insalubres. O grupo indica que o setor de frigoríficos seja incluído no anexo 14 da norma, que fala sobre riscos biológicos, a fim de garantir o acesso ao adicional de insalubridade. Por fim, defende que os trabalhadores do setor tenham direito à aposentadoria especial, podendo se aposentar quando completados 25 anos de trabalho na área.

A partir da proximidade de Roberto com confederações sindicais, o estudo foi apresentado à Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação, Agroindústrias, Cooperativas de Cereais e Assalariados Rurais (Contac) e à Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA), que irão enviar ofício aos Ministérios da Saúde, do Trabalho e Emprego e da Previdência Social, embasado nos resultados e nas recomendações dos pesquisadores. “A gente já foi procurado por essas confederações para ajudar a escrever esse ofício e encaminhar para os três ministérios. É uma questão de ciência aplicada”, afirma Roberto.

 

Camila Raposo | [email protected]
Jornalista da Agecom | UFSC

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