Conheça as ‘pegadas’ de Hassis, artista que viveu Florianópolis

Poucos artistas florianopolitanos ou adotados pela cidade deixaram tantas pegadas quanto Hiedy de Assis Corrêa, o Hassis (1926-2001). A praça 15 de Novembro e as calçadas que a circundam mantêm, desde 1965, o piso em petit pavê com desenhos de sua autoria (assim como ocorre nas praças Bulcão Viana e Benjamin Constant), sobre o qual milhares de pessoas caminham todos os dias.

Hassis deixou pegadas por toda Florianópolis – Foto: Fundação Hassis/Divulgação/ND

Painéis e murais do artista podem ser vistos na igrejinha da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), no Floripa Airport, na agência central Banco do Brasil, na ACM (Associação Catarinense de Medicina), no Colégio Catarinense e em uma série de outros pontos, em paredes internas ou externas, para usufruto dos transeuntes e de frequentadores desses espaços.

E há muitas outras obras que a Fundação Hassis, criada para preservar e difundir todo o legado, guarda em suas instalações, no bairro de Itaguaçu. Ali está um dos maiores acervos deixados por um artista catarinense até hoje, formado por desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, vídeos em Super 8, livros e documentos que nenhum pesquisador da arte catarinense pode ignorar. A instituição executa vários projetos envolvendo escolas e instituições, recebe estudantes, edita obras impressas e mantém auditório, oficinas e atividades de difusão cultural, como seminários e exposições.

É por meio desse trabalho que a fundação ajuda a manter os rastros do artista autodidata, que foi moderno quando Florianópolis ainda vivia da arte figurativa e fez crítica social quando a cidade mais bajulava do que se contrapunha a quem tinha o poder nas mãos. O tema do Contestado, por exemplo, ou era desconhecido pela maioria ou se mantinha como um tabu, mesmo sendo uma ferida na história do Estado, mas Hassis pintou as cenas de guerra e suas sequelas com furor, deixando murais e livros onde o conflito está retratado em cores fortes e vibrantes.

Os desenhos do artista já foram reconhecidos por críticos – entre os quais João Evangelista de Andrade Filho, ex-diretor do Museu de Arte de Santa Catarina – como o ponto alto de sua obra. Ele ilustrou livros de Aníbal Nunes Pires e outros escritores do Grupo Sul, que trouxe a arte moderna para o Estado em meados do século passado, e criou desenhos para revistas e jornais, além de cartazes e logotipos para empresas. No acervo da Fundação Hassis há quase três mil obras (desenhos e telas), oito mil fotografias e milhares de recortes com notícias sobre arte e cultura que ele acumulou durante mais de 40 anos.

As filhas Leilah Corrêa Vieira e Luciana Paulo Corrêa, que administram a fundação, vêm lutando para manter viva essa relação do artista com a cidade. Ao lado da diretora artística Monique Fonseca e da administradora Elizabeth Paulo Valiati, elas se desdobram para viabilizar projetos que dependem de leis de incentivo, fundos e editais para sair do papel. “Queremos mostrar a obra dele e ajudar a formar público para a arte”, diz Luciana.

O começo, nas ondas do Grupo Sul

Hiedy de Assis Corrêa nasceu em Curitiba (PR), mas sua família mudou-se para Florianópolis quando ele tinha dois anos de idade. Na infância e adolescência, lia histórias em quadrinhos, e depois enveredou pelo desenho, que se tornou uma atividade profissional. Em 1948, estava estudando contabilidade quando o escritor Aníbal Nunes Pires, um de seus professores, o convidou para ilustrar um conto e um livro de sua autoria. Após fazer o mesmo com um conto de Salim Miguel, passou a integrar o time de artistas da Revista Sul, porta-voz do modernismo artístico e literário em Santa Catarina.

Em 1957, ao lado de Ernesto Meyer Filho, Hassis organizou a exposição Pinturas e Desenhos de Motivos Catarinenses, que abriu as portas para a criação do GAPF (Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis), a primeira entidade a congregar pessoas dadas a fazer arte na cidade. Já com uma carreira sólida, ele começou a mexer com fotografia, filmagens, colagens e pintura mural. São dessa época obras como “Ontemanhã” e “Mural Humanidade” – esta, pintada nas paredes da capela da Santíssima Trindade.

Ele também se envolveu profundamente com o Carnaval, fazendo a decoração e desfilando pelos clubes Lira e Doze de Agosto. “Em casa, a folia começava em dezembro, na preparação para o Baile Municipal”, conta a filha Leilah Corrêa Vieira.

Um acervo rico, variado e de alto valor

O acervo pictórico deixado por Hassis é composto por cerca de 600 obras, feitas em tinta acrílica sobre tela, eucatex, papelão ou madeira. No museu que leva seu nome está a primeira pintura que fez, em 1957, e o último trabalho, de 2001, que ficou inconcluso. Na escultura, o acervo contém obras realizadas com restos de materiais, como resíduos da construção civil. Sua produção sobre papel compõe um espólio depositado em 25 caixas, totalizando perto de 1.500 obras – incluindo o primeiro desenho, feito aos 11 anos.

Chamam a atenção os mais de sete mil documentos e recortes de jornal com notas e matérias sobre sua obra e a de outros artistas que conhecia. Ali também estão catálogos e convites de exposições que formam uma linha do tempo do que ocorreu nas artes plásticas do Estado ao longo de mais de quatro décadas. Não menos relevante é o acervo fotográfico, porque ele não saía de casa sem uma máquina a tiracolo. É um rico documento da Florianópolis das décadas de 60 a 80, com seus recantos, figuras típicas e a cena artística vigente.

No audiovisual, no qual se colocou como um pioneiro, há no acervo da Fundação Hassis muitos trabalhos em Super 8 como “Ontemanhã”, “Itaguaçu”, “Mãos”, “Ano 66” e “Batucada”.

Entre as obras pintadas em série aparecem a “Via Crucis”, de 1962, com as 14 estações da Via Sacra, e “O circo”, sobre o universo dos espetáculos circenses e os sonhos e fantasias que cercam a atividade (depois publicada no álbum “Respeitável Público”). O painel “Contestado – Terra contestada” é uma de suas obras mais icônicas, com 36 metros de comprimento, dividida em sete módulos, exposta no Museu do Contestado, em Caçador.

Na entrada do Museu Hassis está uma de suas obras mais emblemáticas, “Vento Sul com Chuva”, mostrando um homem que ao atravessar a rua, em dia de fortes ventos na Ilha, dispara um olhar furtivo a uma jovem que cruza em sentido contrário – e é correspondido num flerte momentâneo e fugaz.

O papel de difundir e democratizar o acesso à arte

As filhas do artista se empenham para manter o projeto Hassis pela Cidade, que envolve crianças de escolas, ONGs e outras instituições em um programa de arte-educação e curadoria para ensinar a olhar as obras de arte. Quando não estão nas ruas, as mentoras do projeto recebem estudantes na fundação, que tem o diferencial de conter o acervo e todo o legado do artista. “Disponibilizar é mais do que salvaguardar”, diz a filha Luciana ao justificar o esforço para apresentar o acervo aos alunos.

A própria casa-museu é uma atração, porque foi construída em 1969 com materiais de demolição e reciclados – uma ousadia para a época. Uma sala é reservada para exposições temporárias, e há ambientes onde são gestados os projetos que mantêm a fundação viva e atuante, planejando novas ações. Há muita coisa ainda para ser digitalizada, um trabalho em processo, que exige recursos, tempo e pessoal disponível.

Nas próximas semanas, a fundação deve receber o acervo de obras de arte do Clube Doze de Agosto, cuja sede será transformada num centro de atenção a crianças e idosos pela prefeitura de Florianópolis. Será mais um acréscimo à riqueza que a casa já contém e administra, porque há telas de Eli Heil, Valda Costa, Martinho e Rodrigo de Haro, entre outros nomes de ponta na arte de Santa Catarina.

No momento, está em análise para aprovação o projeto “Hassis, suas origens e eu”, com a participação de 20 artistas (e também fotógrafos e ilustradores) que usarão obras de Hassis para criar novos trabalho a partir de seu ponto de vista e dos materiais que utilizam. A conclusão do projeto poderá resultar numa exposição a ser exibida na cidade no segundo semestre deste ano.

Já a campanha “Adotar um metro quadrado da Fundação Hassis significa ser responsável por quilômetros de criatividade”, com slogan do artista Neno Brazil, busca o apoio de escolas particulares e da iniciativa privada para capitalizar a fundação e viabilizar seus muitos projetos de difusão e democratização da arte na cidade.

Por fim, no dia 26 deste mês, às 18h, acontece o lançamento do livro “Guerra do Contestado Ilustrada”, da EdUFSC, que conta com ilustrações de Hassis e textos da professora e historiadora Marli Auras. Será na Igrejinha da UFSC, com palestra do escritor Godofredo de Oliveira Neto, eleito este ano para a Academia Brasileira de Letras.

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