‘Moda é possibilidade’: empreendedoras propõem soluções sustentáveis em Florianópolis

“Sempre tive o hábito de repassar as minhas roupas através dos grupos de Facebook, na época que estavam em alta. Encontrava meninas que tinham o mesmo costume de fazer as trocas e, assim, também ganhar um dinheirinho”, relata Ciana Branbolt da Silva, uma jovem de 25 anos que, em meio à agonia da quarentena por conta da Covid-19, encontrou uma oportunidade de empreender na cidade de Florianópolis.

Ciana propõe sustentabilidade na moda com seu brechó

Ciana Brandolt é uma das responsáveis por organizar os encontros da Manas Itinerantes – Foto: Arquivo Pessoal/ND

Movida pela vontade de transformação, a empreendedora decidiu dar vida ao Acervo 23, um negócio totalmente virtual, construído nas redes sociais. Com destreza, esse se tornou o seu principal empreendimento, onde comercializa, em média, cerca de 300 peças mensalmente.

O mercado de produtos usados cresceu no Brasil durante a pandemia da Covid-19. Entre 2021 e o primeiro semestre de 2022, mais de 6,7 mil novos negócios foram abertos, conforme levantamento do Sebrae.

A busca por uma moda mais sustentável foi responsável pela criação de novos negócios em Santa Catarina. Seja transformando “lixo” em jaquetas, brechós ou aluguel de roupas casuais, as marcas escancaram o desafio da indústria têxtil catarinense nos próximos anos: uma produção mais limpa.

Santa Catarina em busca de um “estilo” menos poluente

A indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo, conforme levantamento feito pela Global Fashion Agenda, em 2021. De acordo com o relatório “Fios da Moda”, o Brasil confecciona anualmente cerca de 8,9 bilhões de peças, o que equivale, em média, 42,5 peças por brasileiro ao ano. O estudo foi realizado em conjunto pela Modefica, FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas), Regenerate Fashion e a Laudes Foundation.

Setor têxtil produz mais de 8,9 bilhões de peças por ano – Arte: Gil Jesus/ND

Segundo o levantamento, a região Sul é a 2ª que concentra mais empresas do segmento de têxtil e confecção no País, com 31,1% dos negócios. De acordo com a Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina), o Estado também é o 2º com mais estabelecimentos desta indústria no Brasil, ficando atrás apenas de São Paulo.

São 8.937 empresas catarinenses que empregam 160 mil pessoas, o equivalente a 17,2% da indústria catarinense. Diante de um panorama desafiador no mundo fast fashion, em que as roupas são tratadas como descartáveis, a indústria têxtil catarinense enfrenta a tarefa de se reinventar.

Santa Catarina é o 2º com o maior número de estabelecimentos do setor têxtil e confecção – Arte: Gil Jesus/ND

A ânsia por uma moda consciente, que preza pela sustentabilidade, ecoou como um chamado para o surgimento de empreendimentos inovadores em terras catarinenses e o Estado se tornou o epicentro de uma transformação revolucionária, onde o descarte se converte em tesouros vestíveis, brechós exalam charme e a locação de trajes casuais ganha força, permitindo que os fashionistas experimentem uma diversidade de estilos sem contribuir para a proliferação desenfreada de peças novas.

Essas marcas pioneiras revelam corajosamente o desafio premente que a indústria têxtil enfrentará nos próximos anos: produzir de forma mais limpa e menos nociva ao meio ambiente. Isso parece ser um chamado inadiável para a adoção de práticas sustentáveis em toda a cadeia produtiva, desde a seleção dos materiais até a destinação final dos resíduos.

“Desde o início, eu procurei garimpar as roupas em ONGs (Organização não governamental), igrejas e bazares beneficentes e coisas que consigam ajudar também convertendo esses valores com causas que eles defendem”, explica Ciana.

“A sustentabilidade precisa ter tudo”

Neide Schulte, professora do curso de Moda da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), explica que as empresas não podem se intitular sustentável, pois esse seria um status considerado impossível ser atingido plenamente por um negócio.

Neide Schulte é professora do curso de Moda da Udesc – Foto: Arquivo Pessoal/ND

A acadêmica, que também é coordenadora do programa de extensão Ecomoda na universidade, explica que a sustentabilidade é um conjunto de características, que se comprometem tanto com o meio ambiente quanto com a dignidade do trabalho, por exemplo.

“Precisa ter tudo: social, ambiental e econômico. Uma marca, às vezes, atende mais um aspecto do que outro. Atender a todos os requisitos é muita pretensão, porque é algo que nós ainda estamos buscando. O que é correto dizer é que uma marca é pró-sustentável, que ela tem isso como norte”, exemplifica Neide.

Florianópolis conta com diversas empreendedoras que possuem a “pró-sustentabilidade” como guia. Diretamente de seu estúdio, situado às margens da Lagoa da Conceição, Karine Freitas imprime vida nova às velas de kitesurf que, de outra forma, seriam lançadas ao lixo. Com doses de criatividade, ela transforma esses materiais aparentemente condenados em elegantes bolsas e jaquetas, provando que a moda pode florescer a partir do inusitado.

No coração da cidade, Victoria Scherer e Paula Salum, duas amigas inseparáveis, também compartilham um propósito comum: o aluguel de roupas casuais.

Em um “quarto” divertido que abriga o negócio, elas oferecem uma variedade de peças que podem ser desfrutadas por meio de um aluguel mensal ou até mesmo por peça, sem a necessidade de serem permanentemente adquiridas. Além disso, a dupla compartilha informações sobre moda em um perfil com mais de 250 mil seguidores.

Victoria propõe sustentabilidade na moda com aluguel de roupas casuais

Victoria Scherer é uma das fundadoras da Não Tenho Roupa – Foto: Leo Munhoz/ND

As trajetórias do empreendedorismo que busca por sustentabilidade

Manas Itinerantes: empreendedoras se reúnem em feira

Com o sucesso no primeiro ano, Ciana Branbolt da Silva resolveu dar um passo extra pela cultura do brechó em Florianópolis e criou a feira Manas Itinerantes, em 2021, com o objetivo de reunir empreendedores em locais diferentes da Capital catarinense.

Manas Itinerantes reúne diversos donos de brechós de Florianópolis – Foto: Manas Itinerantes/Divulgação/ND

“Eu aluguei o meu salão de festas para fazer uma feira e convidei em torno de oito expositores. A primeira edição contou com muita gente e resultou em uma multa de R$ 450 por conta da grande movimentação no meu prédio. Neste mesmo dia, eu conheci uma cliente, que foi dona de um brechó, e um casal de meninas que também têm um negócio e me ajudaram a tocar o Manas Itinerantes”, relembra.

Em meio ao sucesso do evento, Ciana, Letícia Monteiro, Rafaela dos Santos e Victoria Freitas procuraram proprietários de brechós que participavam da Feira Arte Livre, na Trindade, e que contavam com o interesse de fazer parte de um evento destinado especialmente para a comercialização de roupas.

“Fomos alimentando essa feira e utilizamos o público que já fazia parte de outras, mas não tinham a visibilidade direcionada. Dois dias depois, eu pesquisei uma casa no Campeche e abrimos as inscrições por um valor simbólico em novembro de 2021. Nós não imaginávamos que teríamos um público tão grande em torno de 100 visitas. As vendas foram ótimas e contamos com muitas visitas”, relembra Ciana.

O que se tornou um evento mensal virou quase quinzenal e o Manas Itinerantes vai para a sua 25ª edição, sendo que o espírito é seguir sem um local fixo com o objetivo de que empreendedores de diversos bairros de Florianópolis tenham a chance de participar. Atualmente, além das quatro “fundadoras”, a organização também conta com a participação de Samuel Thurow.

Samuel Thurow, Letícia Monteiro, Rafaela dos Santos, Ciana Brandolt, Victoria Freitas são os atuais organizadores do Manas Itinerantes – Foto: Manas Itinerantes/Divulgação/ND

“Eu sinto que a pandemia trouxe muito à tona a moda consciente e o brechó porque as pessoas não saiam de casa e o virtual se tornou uma opção. As pessoas também se conscientizaram e aprenderam mais sobre”, destaca Ciana Brandol.

Empreendedorismo e cuidado através da moda circular

Foi quando trabalhava em uma oficina de kitesurf que a estudante de moda Karine Freitas percebeu o potencial  —  e o desperdício  —  do kite (pipa, em inglês) que não tinha mais conserto. A empreendedora passou a levar o material que seria destinado no aterro sanitário da Capital para casa. Com as peças, criou bolsas, jaquetas e um novo negócio.

“Sempre notei a quantidade de material que entra em desuso porque o kite tem horas úteis de uso e depois começam a aparecer problemas. Então, ele se torna caro para arrumar e velejar. Assim como fica obsoleto porque são apresentados modelos novos com mais tecnologias”, afirma a dona da In Core Ecodesign.

Bolsa produzida pela In Core Ecodesign – Foto: Marcos Jordão/ND

O que Karine produz pode ser explicado pelo conceito de upcycling, que é a transformação de algo que já foi usado em um objeto com outra função. A técnica é conhecida no meio da moda como uma alternativa sustentável.

Anteriormente, o material que seria dispensado era enviado para a Comcap, responsável pelo recolhimento de materiais sólidos de Florianópolis. Atualmente, a autarquia não realiza o trabalho específico de coleta separada do material, que é descartada como rejeito.

Apesar disso, a prefeitura afirma que está em processo de organização de um edital de credenciamento para empresas interessadas em apresentar alternativas para o resíduo, que “deve ser lançado em breve”.

Fios utilizados pela indústria podem levar até 400 anos para se decompor

Foi justamente o material que é utilizado no kitesurf, o poliéster, que motivou Karine a transformar o que viraria lixo em algo novo. Dados da Textile Exchange dão conta que, apenas em 2020, 57 toneladas de poliéster foram produzidos em escala global e metade (52%) da produção têxtil mundial no ano, que foi de 109 toneladas.

De acordo com o relatório Fios da Moda, apenas no Brasil, a fabricação deste produto representou 68% em 2018, com uma produção anual de 159 mil toneladas. O poliéster pode levar até 400 anos para se decompor, o algodão de 10 a 20 anos e outros tecidos sintéticos entre 100 a 300 anos.

Tecidos usados no setor têxtil podem levar até 400 anos para se decompor – Arte: Gil Jesus/ND

Entre o trabalho na marca e o curso de moda, Karine produz, em média, sete peças de bolsas por mês e até três jaquetas, que também são fabricadas através do material do kitesurf. Além disso, ela tem dois pontos de venda, sendo o primeiro na loja Villaget e outro na Aldeia Conceição, ambos na Lagoa da Conceição.

Pequenos negócios focam em sustentabilidade e expansão

Com o objetivo de estruturar e escalar o seu negócio, a empreendedora busca parcerias como, por exemplo, através do Agente Local de Inovação em Moda, disponibilizado pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) de Santa Catarina.

“Eu sei que eles têm essa preocupação e oferecem cursos e programas que incentivam o interesse para quem quer empreender como uma marca de moda e para dar o pontapé inicial. Atualmente, realizamos duas conversas remotas e a próxima será presencial para conhecer o meu espaço. A ideia é apresentar a minha marca, a estrutura e, em seguida, um modelo que fortaleça o meu negócio para que seja possível expandir”, relata Karine.

Jaquetas produzidas através do material de kitesurf – Foto: Marcos Jordão/ND

Carolina Proença, gestora de Moda do Sebrae/SC, explica que o programa está no terceiro ciclo e que conta com um público diversificado, desde micro e pequenas empresas até a moda varejista.

“Temos pessoas que prestam assessoria e acompanham as empresas por cerca de seis meses com o objetivo de melhorar os processos desde o início até a venda”, explica Proença.

Carolina Proença é a gestora de projetos de moda do Sebrae de Santa Catarina – Foto: Arquivo Pessoal/ND

Além disso, o órgão oferece outras atividades de apoio aos micro e pequenos empreendedores catarinenses como o Conexões Corporativas, que tem como objetivo auxiliar no desempenho de conteúdos digitais das empresas, e o Moda Catarina, que visa alavancar e valorizar as empresas catarinenses.

Além disso, a gestora Carolina Proença afirma que iniciativas como a de Karine auxiliam no fortalecimento do setor no Estado.

“A reutilização, reparo e manufatura contribui para o setor de moda e isso é uma tendência de um mercado forte porque conseguimos fazer muita coisa com o material existente. A utilização desses materiais e também o aluguel de roupas e brechós são tendências e boas oportunidades para os pequenos negócios adentrarem no mercado e se tornarem competitivos”, complementa.

Não Tenho Roupa propõe armário “compartilhado”

Em 2018, no Centro de Florianópolis, Victoria Scherer procurou a colega do curso de administração, Paula Salum, para propor um negócio de aluguel de roupas casuais. No ano seguinte, a dupla criou a “Não Tenho Roupa”, quando passou a alugar roupas do próprio vestiário e falar sobre moda nas redes sociais.

“No início trabalhamos com o mínimo produto viável, só eu e a Paula atendendo e vendas por WhatsApp e direct. Quando a demanda começou a crescer e buscamos um estabelecimento, veio a pandemia”, relembra a empreendedora.

Victoria e Paula criaram a Não Tenho Roupa após meses de planejamento – Foto: Mariana Smania/Divulgação/ND

Durante o período da Covid-19, o perfil das redes sociais cresceu e, até 1º de junho de 2023, contava com mais de 250 mil seguidores. O alcance das redes sociais fez com que a marca passasse a criar conteúdo para outras marcas, o que Victoria exemplificou como se a “Não Tenho Roupa fosse uma blogueira”.

Com o aumento da demanda por aluguéis, o negócio passou a ter mais um sócio, Mario Cherubini. O head de tecnologia desenvolveu o site e o aplicativo utilizado para o aluguel. No final de 2021, a dupla abriu um espaço no Centro de Florianópolis no formato de um quarto.

Não Tenho Roupa aluga, em média, 200 peças por mês – Foto: Leo Munhoz/ND

Apesar do negócio alugar apenas para moradoras da Grande Florianópolis, a empreendedora afirma que as redes sociais fazem parte de uma estratégia de expansão.

Atualmente, a Não Tenho Roupa aluga, em média, 200 peças por mês para 150 clientes, destes, 40% são consumidoras recorrentes. Agora, os sócios buscam investimento para atuar em São Paulo.

“Estou num local que eu só consigo alugar pra Floripa. Mas isso é hoje, eu quero poder alugar para outras cidades e já ter um público quente daquela região nas redes sociais para quando eu chegar naquela cidade aquela pessoa já saber que eu existo”, explica Victoria.

“Sustentabilidade é o futuro”

A afirmação acima é da professora Neide Schulte, mas que faz o alerta sobre a dependência do interesse dos consumidores para que as empresas adotem iniciativas mais limpas. A acadêmica coordena, há 18 anos, o programa de extensão Ecomoda da Udesc e fala que no período percebeu uma evolução na consciência de quem compra roupas.

“Não precisamos falar 100% de sustentabilidade, a gente só precisa ter isso como norte. As marcas e pessoas achavam que a moda pró-sustentabilidade era algo muito distante, que tinham que pagar caro. Porém, quando elas entenderam que é a própria lógica de consumo, isso mudou”, explica.

De acordo com um artigo da revista “L’Officiel“, que aborda o ciclo das tendências de moda, o ritmo em que acontece a troca de uma tendência para outra acelerou com as redes sociais. Com influencers e formadores de opinião no Instagram e TikTok, por exemplo, tendências que costumavam voltar a cada 15 anos são feitas pela indústria para durar uma ou duas temporadas.

Segundo o relatório Fios da Moda, apenas na região do Brás, em São Paulo, são coletadas 45 toneladas de resíduo têxtil por dia. Para contornar a tendência de um aumento na produção de lixo prevista por especialistas, a professora da Udesc afirma que brechós, o aluguel de roupa, e o show fashion — uma teoria que consiste em marcas que produzem coleções mais espaçadas, atemporais e de design mais durável — são exemplos de reduzir o prejuízo.

Conforme um levantamento do Sebrae, o segmento do aluguel de roupas empregou ao menos 250 mil pessoas até outubro de 2022. Para Victoria, a Não Tenho Roupa é pensada justamente para acompanhar as tendências sem contribuir para o aumento de lixo.

“Falar que por ser uma tendência passageira, então ‘não pode investir nisso’, é radical. Aqui você tem a oportunidade de usar uma tendência, mas não de uma forma que você vai investir nela, vai deixar ela parada no armário e depois vai descartar. Então vamos comprar junto? Uma pessoa compra e várias usam. Assim, você dá um ciclo de vida útil para aquela peça. Já que um dos problemas é usar e descartar”, pontua.

Além disso, a empreendedora defende que moda é possibilidade. “Aqui você nunca vai ver um conteúdo de use isso mas não use aquilo, para gente isso não faz sentido porque o que falamos é que você pode usar o que você quiser, o que faz sentido na sua rotina”, fala Victoria, que completa que o “aluguel de roupas contribui para que uma roupa com estampa de vaquinha seja tão utilizada quanto a calça jeans”.

Grandes marcas podem ser mais sustentáveis

De acordo com Neide Schulte, uma marca que busca ser pró-sustentável precisa olhar para a cadeia de produção desde a matéria prima. Por isso, a professora da Udesc ressalta que é necessário pensar no ciclo da peça e como ela irá retornar, ser reciclada ou se tornar algo novo.

“Um negócio que não possui logística reversa não pode falar que é sustentável, é o mínimo”, aponta.

A logística reversa é prevista na PNRS (Política Nacional dos Resíduos Sólidos). O texto prevê que o instrumento pode viabilizar a coleta e a restituição deste material ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou outras destinações finais ambientalmente adequadas.

Com o objetivo de fomentar as iniciativas, o governo de Santa Catarina destaca programas como, por exemplo, o “Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) Mulher Catarina”, que tem o objetivo de oferecer uma linha de crédito especial para as empreendedoras. O projeto, anunciado em março de 2023, conta com juro zero e permite operações até R$ 150 mil, dentro de um total de R$ 90 milhões.

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