O carro como último da lista de prioridades nas cidades

A arquiteta Maria Helena da Rocha Paranhos, que mora em Berlim (Alemanha) e esteve há poucos dias em Florianópolis, fala nesta entrevista sobre os desafios da mobilidade urbana.

Arquiteta Maria Helena Paranhos – Foto: Divulgação/ND

A senhora fala que o gestor público precisa ousar para mudar paradigmas. Quando se fala em mobilidade urbana, um exemplo é tratar os carros com menos prioridade?
Sim. Vivenciamos no Brasil na segunda metade do século XX o carro como o indutor do crescimento urbano, a base do planejamento e desenvolvimento urbanos. Não importava onde se morava e trabalhava em uma cidade: com o carro circulávamos e acessávamos todos ambientes urbanos. Sequer o transporte urbano era privilegiado sobre o automóvel.

No século XXI, talvez movido pela consciência ambiental de boa parte da população no mundo, pelo reconhecimento de que o consumo desenfreado da sociedade civil está nos levando a um caos climático, com temperaturas acima da média no verão e abaixo dela no inverno, com secas e enchentes antes não vivenciadas, o cidadão finalmente ganhou o seu protagonismo.

Hoje em dia é inconcebível planejar cidades, sejam estas pequenas, médias ou grandes, sem colocá-lo em primeiro lugar. Nesse caso, para mim a “mobilidade” do cidadão diz respeito a ele ter calcadas largas, arborizadas com pisos contínuos em todo o perímetro urbano, como tambem ele ter perto de onde mora, condições de acessar os serviços vicinais afetos à sua existência (compra de produtos alimentícios, farmácia, escola com ensino fundamental, praças e parques, eventualmente restaurante, cafés, atividades de lazer, além de bom transporte público interligando esse bairro onde reside a outros e a centros urbanos mais robustos.

Ou seja, a mobilidade no século XXI está relacionada à qualidade que a cidade oferece ao cidadão em ele se mobilizar no tecido urbano, com boa infraestrutura pública (a começar pelas calçadas) e inibindo a utilização do carro para realizar as tarefas. O ir e vir em segurança, com calçadas atrativas, oferecendo nelas o próprio prazer de caminhar, seja sozinho, com crianças, com idosos. Ao mesmo tempo, oferecendo acessibilidades a todo e qualquer cidadão e visitante.

Infelizmente a maioria das cidades brasileiras não cuida do cidadão, e quando efetuam alguma melhoria a esse respeito, limitam-se à uma pequena área central. Isso custa muito, muito pouco à gestão urbana, faria um bem enorme à toda população, mas parece que não há vontade política em mudar esse paradigma: alargam-se ruas em detrimento à pouca largura das calçadas existentes, ou constroem-se mais viadutos, ou novas ruas… é muito triste ver isso, repetir-se erros do século passado em pelo século XXI.

O que as cidades europeias, especialmente Berlim, onde mora, podem inspirar as brasileiras em termos de planejamento urbano e mobilidade?
É difícil comparar as cidades europeias, principalmente Berlim (Alemanha), com as cidades brasileiras. Darei um exemplo: o primeiro metrô em Berlim ocorreu em 1898! E de lá para cá, o transporte público sempre foi valorizado, oferecendo ao cidadão condições de se locomover na cidade sem usar o carro.

Assim é em outras cidades; mas há também aquelas cujo transporte público nao seja tão eficiente, e o carro é necessário para locomover-se no amplo território urbano. Daí nao tem jeito, o caos se instala. Porém a maioria das cidades europeias já perceberam que o carro destrói a qualidade do ambiente urbano, e que o cidadão precisa recuperar o seu protagonismo: as calçadas ficaram mais amplas,a velocidade dos carros foi reduzida para ter uma convivência mais adequada com as bicicletas e o cidadão, algumas ruas foram bloqueadas para carros (apenas abertas para carros em serviço público ou bicicletas).

São exemplos de que o carro é o último da lista de prioridades na cidade: em primeiro lugar o cidadão, depois as bicicletas, a seguir o transporte público e o carro por último. Quem insiste em usar carro tem que saber que: há poucas vagas para estacionar onde ele quer ir, o tempo em locomoção será maior, porque as rodas foram reduzidas e a velocidade também, e na melhor das hipóteses o estacionamento particular ficou mais caro.

Em Berlim, por exemplo, o zoneamento e o uso do solo proíbe o surgimento de estacionamentos particulares, dificultando o uso do automóvel em boa parte da cidade. São medidas que o poder público local pode tomar para “humanizar” as cidades.

Claro, há que em primeiro lugar melhorar o transporte público e as calçadas. Também rever seu planejamento urbano, zoneamento, planos de uso e ocupação do solo, dinamizando os bairros, tornando-os mais independentes, mas acima de tudo e em primeiríssimo lugar, cuidar do seu cidadão. Sempre. E isso custa muito pouco!

Creio nao ser importante ressaltar, mas o fato, de que é o cidadão que passeia pelas calçadas, ou o visitante, que irá dinamizar a venda do comércio local. Nao é o carro que pára na frente da loja que fará isso!!!! E é nisso que o planejador urbano precisa pensar, e o gestor público precisa realizar…

Qual sua percepção sobre os desafios da mobilidade urbana de Florianópolis – que acaba de atualizar o Plano Diretor -, considerando o perfil econômico da cidade e suas características geográficas?
Dinamizar centros urbanos já consolidados, mas estagnados, como na Lagoa da Conceição, ou mesmo no centro da cidade. Há bons conceitos em como se realizar isso (cada cidade tem suas características e eu vejo enormes potenciais em Florianópolis!) dinamizando a economia local, através do comércio e serviços, bem como devolvendo a condição de moradia próximo onde se pode trabalhar ou estudar.

Centros urbanos há décadas pensam nisso, e poucos conseguiram alcançar esse objetivo, mas creio que Florianópolis possui ótimas condições para tal.

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