Abril Indígena: a médica do povo Kaingang que, ainda estudante, salvou a vida do irmão

Foto: acervo pessoal

Depois de ouvir de um paciente que não seria “cobaia de índio”, Aniéli Belino, indígena do povo Kaingang, buscou na família e na fé a força que faltava para concluir o Curso de Medicina na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada no início de dezembro de 2022, a recém-formada relembra as dificuldades, as conquistas e o apoio que recebeu ao longo de sua vida acadêmica, que fez toda a diferença quando salvou a vida do próprio irmão, vítima de um acidente de carro. O exemplo de Aniéli, ou Di, como é conhecida, está neste perfil escrito pelo estudante Jucelino Filho, do Curso de Jornalismo da UFSC.

Coração gentil: Aniéli Belino, médica por paixão

Foi depois de uma cantiga que falava de paixões e limitações que se deu início à entrevista com Aniéli. De pés no chão, em meio a um gramado que mais parecia um bosque, localizado no coração da UFSC, em Florianópolis, ela começa a contar a sua história de vida. Aniéli Belino é indígena do povo Kaingang e viveu a maior parte da sua vida na Terra Indígena Xapecó, na cidade de Ipuaçu, em Santa Catarina. Aos 10 anos, já sonhava em ser independente e trabalhava muito para comprar seus doces.

Desde muito pequena, suas conquistas foram com seu próprio dinheiro. Ela ajudava sua avó cuidando da horta e fazendo faxina. Tudo isso deixava as suas mãos ásperas e calejadas, mas ela nem se dava conta. Só foi perceber quando, mais tarde, passou por uma avaliação de um médico.

“Naquele momento é que eu fui perceber a diferença das nossas mãos e pensei: quero ser médica para ter as mãos iguais às dele”. E assim aconteceu. Anos depois, em 9 de dezembro de 2022, se formaria em Medicina pela UFSC.

Sentada no gramado em frente ao Templo Ecumênico, no Campus Universitário Trindade, em Florianópolis, Di, como é chamada pelos seus amigos, relembra o caminho que percorreu para estudar Medicina. “Eu gosto daqui, é algo mais centralizado e eu adoro sentar e colocar o pé na grama. Eu acho que aqui é o centro. Para mim, o coração da UFSC. Eu gosto muito desse lugar, me faz lembrar de muita coisa que eu vivi por seis anos. Vir aqui é como se estivesse encerrando um ciclo do meu dia, e agora um ciclo da minha vida. E eu gosto de sentar aqui, é o meu local de reflexão”.

Aniéli sentada com o pé na grama do jeito que gosta. Foto: Jucelino Filho/ Especial/ Agecom

“Eu não vim aqui para ser cobaia de índio”, reclamou um paciente

Sentindo a grama, fala sobre preconceito e seu semblante muda. Suas lembranças retrocedem para quando estava na terceira fase do curso. Durante uma aula prática em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), enquanto acompanhava uma consulta, o paciente lhe perguntou: “Você é indígena?” Firmemente, Aniéli respondeu que sim. Foi aí que ouviu a frase: “Então tu podes ficar aí, não chegue perto de mim, porque eu não vim aqui para ser cobaia de índio”.

Desapontada, hoje avalia o vivido naquele dia: “A risada dele com tom de brincadeira, sabe? Tu percebes que não é uma brincadeira normal. Aí eu falei: ‘o quê?’ E pensei: ‘como assim? Está acontecendo isso, é real?’”. Ao lembrar do episódio, sua voz fica trêmula e seus olhos marejados. Engolindo seco, ela mergulha mais uma vez nas lembranças e volta para aquele momento. Sem saber o que fazer ou se deveria falar com alguém, Di ficou angustiada enquanto ouvia o paciente continuar a insultá-la, falando que Medicina era um curso muito difícil e que, de alguma maneira, não fossem as cotas, ela não estaria ali.

Aquele fato lhe trouxe algumas indagações: “Eu posso estar aqui? Será que eu mereço estar aqui?”. A dúvida então bateu e a tristeza também. Foi nesse momento que a jovem ligou para os seus pais. O Velhote, como Di gosta de chamar seu pai, Nilson Belino, iniciou um diálogo com a filha que durou cerca de um mês. Nilson contou a ela um pouco de suas experiências ruins. Ele já havia sido um líder em sua comunidade, viajava muito para representá-los e passou por alguns episódios de discriminação e preconceito.

“Eu falei para ela levantar a cabeça e dar o melhor de si, pois muitas pessoas não tem noção do que falam, só reproduzem o que ouvem, sem mesmo conhecer as diferenças que existem entre as pessoas. Assim sendo, não conseguem aceitar essas diferenças”, comenta Nilson. O pai da jovem diz que foi um momento difícil para ela, mas com apoio da família ela conseguiu superá-lo.

“Eu acredito que sua fé a deixa mais forte”, diz o pai

Aula prática durante a graduação. Foto: acervo pessoal

A sua fé também teve um papel importante nesse momento. Nilson conta que sua filha sempre gostou de ir à igreja. “Eu fui para a igreja quando tinha mais ou menos 18 anos. Me casei na igreja e eu e minha esposa tivemos três filhos. Mas, mesmo que todos tenham crescido nos vendo ir para igreja, nós nunca impusemos nada a eles. Aniéli desde criança gosta de ir para igreja. Eu acredito que sua fé a deixa mais forte”.

Passar por essa situação e enfrentar o preconceito foi um dos momentos mais desafiadores da vida acadêmica de Aniéli. “Foi um momento muito difícil, chorei muito e pensei em desistir”, relembra a médica. Ela soube tirar o melhor proveito da situação, tornou-se mais forte e achou mais um motivo para ser uma boa profissional. “Isso me reconectou às minhas raízes e me mostrou quem realmente sou”. Chegar a essa constatação foi um longo processo que ela registrou em seu diário.

Di tem o hábito de escrever todas as manhãs, antes de sua corrida matinal. “Às vezes dá vontade de chorar, espernear, gritar, fugir, se esconder e desistir. Nos sentimos desamparados e sozinhos, e essa é a melhor parte. Sabe por quê? Porque é nesse momento que descobrimos que estamos só, só com o nosso eu interior. E esse é o ponto que quero chegar, a mudança em nossa vida não depende de terceiros”, escreveu Di.

Além de escrever o diário, ela realiza diversas atividades: canta, toca violão e pratica atletismo e futebol. Ela é muito conhecida na Atlética do Curso de Medicina da UFSC por ser boa atleta. O atletismo entrou em sua vida quando ingressou na Universidade, mas o vínculo com o futsal vem de berço – um gosto passado a ela através de seus irmãos Elielson e Eliel.

“Minha irmã salvou a minha vida, sou muito grato a ela”, lembra o irmão

Com as medalhas e troféus de competições esportivas. Foto: acervo pessoal

Sábado, 4 de janeiro de 2020. Essa data mudou as vidas da família Belino. Eliel, irmão de Aniéli, se envolveu em um acidente de carro próximo à casa da família dentro da terra indígena. Avisados por pessoas da comunidade que passavam pelo local do acidente, Di e seu pai rapidamente foram até o local. Ao chegarem viram muitas pessoas à volta do carro. Haviam retirado Eliel do interior do veículo pois havia um risco de explosão.

Como os socorristas estavam demorando para chegar, Aniéli decidiu prestar os primeiros socorros. “Ele foi o primeiro paciente politraumatizado que eu atendi. Quando eu cheguei lá, fui realizando o protocolo de primeiros socorros”, lembra a jovem. Ela relata que avaliou, primeiramente, a cervical e as vias aéreas, viu que ele estava com boa respiração, sem sangramento ativo, desorientado em tempo e espaço, sem risco de morte.

Mas, ao checar as pernas de seu irmão, notou que elas estavam sem sensibilidade e sem movimentos. Sem comentar com ninguém, manteve a calma e falou para si mesma: “Agora ele não é meu irmão, é um paciente, eu vou dar o melhor atendimento para ele”. Eliel foi encaminhado para o hospital, mas ficou paraplégico. Como ele adorava jogar futebol, Di prometeu que passaria a jogar por ele.

Eliel diz que sua irmã é um anjo em sua vida, uma melhor amiga, a pessoa que o cuida e protege. “Minha irmã salvou a minha vida, sou muito grato a ela”. Na época do acidente, em 2020, ela estava na sétima fase do curso de Medicina. Os conhecimentos adquiridos lhe permitiram tomar a frente da situação e salvar a vida do irmão, já que o atendimento médico demorou uma hora para chegar ao local.

“Quando eu for médica, crianças e idosos serão atendidos primeiro”, dizia ao pai

Quando tinha 15 anos, Aniéli costumava cuidar de seu sobrinho Davi Gabriel, junto de seus pais. Ele nasceu prematuro e passava muito tempo no hospital. Até os dois anos, a família o levava com frequência para consultas médicas. Foi em um desses dias, que Aniéli e seu pai iniciaram um diálogo referente aos atendimentos prioritários. Nilson lembra das palavras ditas pela filha e diz que ela foi escolhida pela Medicina e não o contrário. “Ela me falou naquele momento: quando eu for médica, crianças e idosos serão atendidos primeiro. Ela é uma pessoa muito humana”, lembra.

Antes de cursar Medicina e postar nas redes sociais fotos de jaleco com a hashtag Medicina por Amor, Di estudou Enfermagem na cidade de Palmas, no Paraná. Ainda assim, não desistiu do sonho de ser médica e usou os conhecimentos adquiridos no curso de Enfermagem como pré vestibular. O resultado foi o seu ingresso na UFSC no primeiro semestre de 2017.

Na formatura, em dezembro de 2022, com os pais. Fotos: acervo pessoal

Sua co-orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), Danúbia Hilleshein, lembra da trajetória de Aniéli como acadêmica. “A Aniéli se destaca por seu nível de comprometimento”, afirma. Ambas se conheceram quando a jovem estudante estava na quarta fase do curso e fez parte de um projeto de extensão que trabalha com reabilitação e estimulação cognitiva para idosos, carinhosamente apelidado de ‘Oficina da lembrança’.

Aniéli foi se aprofundando no projeto e se tornou monitora, responsável por elaborar atividades sociais. Durante a pandemia da Covid-19, o projeto se tornou remoto e Aniéli aceitou mais esse desafio. “Sempre foi muito fácil trabalhar com a Aniéli. Ela demonstra muita facilidade na área da escrita científica, tanto que o TCC dela foi excelente”, lembra Danúbia.

“Ela é um mulherão, em todos os sentidos”, comenta melhor amiga

Durante os seis anos em que cursou medicina, Di conheceu diversas pessoas, mas uma em especial se tornou sua melhor amiga: Raisa Gosch. Elas se conheceram em uma república só para mulheres em 2017. Raisa, agora jornalista formada, sempre foi uma pessoa comunicativa, diferente de Aniéli, que era mais tímida.

Raisa pôde ver a mudança pela qual Aniéli passou: “eu conheci uma menina, agora ela é um mulherão, em todos os sentidos”. Ambas moravam juntas durante quase todo o período de seus cursos, até Raisa se mudar para Portugal. “Ela sempre me apoiou, sempre foi um doce. Ela tem um coração gentil”.

A vida acadêmica apresentou à jovem muitas experiências e mostrou a ela mais motivos para ser uma boa profissional. Ela pretende retornar à comunidade para trabalhar com a saúde indígena, mas antes quer se aventurar pela vida militar, se tornando médica do Exército e trabalhando em missões que levam saúde para comunidades isoladas, populações indígenas, ribeirinhas e famílias carentes. “Eu quero ajudar as pessoas levando saúde para elas. Sou feliz fazendo isso”, diz Aniéli Belino, dona de um coração gentil.

Jucelino Filho, especial para a Agecom/UFSC

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