Pesquisa explora diferentes fases da matéria quântica e propõe novos experimentos

Um grupo de pesquisadores de diferentes instituições publicou um estudo que traz resultados inovadores, com potencial de abrir novos caminhos na área da física quântica. Utilizando cálculos matemáticos e simulações em computadores, os cientistas descrevem o que acontece quando um gás com propriedades magnéticas interage com uma armadilha óptica formada por lasers em temperaturas baixíssimas, da ordem dos nanokelvins – próximas do zero absoluto, que equivale a -273,15º Celsius. 

Disponível na revista internacional Physical Review Letters, o artigo Exploring quantum phases of dipolar gases through quasicrystalline confinement (Explorando fases quânticas de gases dipolares através de confinamento quase-cristalino, na tradução para o português) revela novas fases da matéria em sistemas quânticos. Também aponta possibilidades para a realização de novos experimentos, com a tecnologia disponível em laboratórios especializados, para verificar os resultados obtidos.

“Como físicos que trabalhamos nessa área conhecida como matéria condensada, um dos objetivos do nosso trabalho é justamente tentar entender as propriedades dos sistemas quando eles são, digamos assim, submetidos a condições especiais. A gente sempre tenta encontrar sistemas que tenham um comportamento pouco usual ou exótico quando perturbados. Neste trabalho, estudamos um sistema que, do ponto de vista experimental, tem uma certa relevância, porque já é possível realizar esse tipo de estudo em alguns laboratórios no mundo”, afirma Alejandro Mendoza-Coto, professor do Departamento de Física da UFSC e coautor do artigo.

Na simulação desenvolvida no estudo, um sistema composto por lasers e espelhos cria uma  armadilha óptica, desenvolvida para aprisionar os átomos em uma estrutura que lembra uma mandala microscópica. “Essa é uma estrutura que não é ordenada, pelo menos não no sentido usual. Ela não forma um padrão periódico no espaço, e justamente por ser uma estrutura que não é periódica no espaço, ela induz uma série de propriedades interessantes. É curioso que, ao mesmo tempo em que essa estrutura carece de periodicidade, é fácil perceber que ela apresenta de fato uma certa regularidade na sua forma. Na matemática, esse tipo de padrão ordenado mas não periódico é conhecido como padrão quase-cristalino”, comenta o pesquisador. 

Um quase-cristal é formado pela junção aleatória de um número fixo de padrões geométricos capazes de preencher todo o espaço sem deixar lacunas. É diferente de um cristal normal, no qual átomos ou moléculas são organizados em uma estrutura periódica, em um padrão que se repete em todas as direções. “De várias formas, um quase-cristal é um padrão intermediário entre um cristal e uma estrutura desordenada”, resume Alejandro.

Ilustração da estrutura formada pela armadilha óptica. As partes mais escuras representam as regiões de sombra, os lugares em que os átomos tendem a ficar presos. As regiões mais claras são as que têm luz mais intensa, são os locais mais evitados pelos átomos. A escala de comprimento da armadilha é da ordem dos micrômetros, comparável à largura de um fio de cabelo.

A ideia dos pesquisadores era ver o que acontece quando se coloca um gás com forte magnetismo nessa armadilha óptica em temperaturas extremamente baixas, de até 40 nanokelvins. O elemento químico escolhido para a simulação foi o disprósio, um metal com forte magnetismo.

Os efeitos dessa classe de armadilha óptica em gases sem propriedades magnéticas já haviam sido amplamente estudados. Nesses casos, o que acontece é que os átomos tendem a ficar nas regiões de sombra da armadilha óptica, representadas pelas cores escuras na ilustração acima. Por outro lado, o comportamento de gases com alto magnetismo, sem a existência da armadilha óptica, também já era bastante conhecido. Nessas situações, os átomos tendem a se aglomerar ordenadamente, formando um padrão periódico que lembra pequenas nuvens de duas dimensões.

Entretanto, o resultado é bem diferente quando se coloca gás magnético na armadilha óptica. Os átomos com alto magnetismo se comportam como imãs, com interações de atração e de repulsão. E essas interações, combinadas com a armadilha de lasers, faz com que o sistema adquira configurações completamente novas – são as fases quânticas da matéria que os pesquisadores exploram no estudo, caracterizadas pelo que Alejandro chama de texturas não usuais. É como se o sistema encontrasse um meio-termo entre o desenho da mandala microscópica e o arranjo de nuvens de átomos magnéticos. 

O sistema forma desenhos bem peculiares, com padrões que são, ao mesmo tempo, ordenados e imprevisíveis. “O padrão que é gerado não é previsível, no sentido de que não é periódico. Aqui você tem uma determinada estrutura, mas você não consegue dizer qual estrutura você terá mais à frente”, afirma Alejandro. Alguns outros aspectos também chamaram a atenção dos pesquisadores, como o fato de que essas texturas se modificam consideravelmente quando a intensidade dos lasers é alterada e a mudança na movimentação dos átomos, que deixam de circular no sistema como um todo, mas continuam se movimentando dentro de estruturas menores – as pequenas coroas que podem ser observadas nas figuras abaixo.

Texturas não usuais formadas pela combinação do gás com propriedades magnéticas com a armadilha óptica. As diferentes figuras são formadas pela alteração da intensidade dos lasers.

“O interessante é que comportamentos como esse que estou discutindo aqui não existiriam se ambos os ingredientes [gás com propriedades magnéticas e armadilha óptica] não estivessem presentes no sistema”, diz Alejandro

“Uma parte do nosso trabalho como físicos é entender porque as coisas acontecem dessa forma e, ao mesmo tempo, com esse conhecimento, mudar o sistema para que ele faça coisas que possam ser do nosso interesse. Neste caso aconteceu exatamente isso. A gente acabou descobrindo que se você tem um gás dipolar [com dois polos magnéticos] e começa a perturbar ele com os lasers da forma apropriada, você cria novos comportamentos que o sistema sozinho, sem esses lasers, não teria”, acrescenta o cientista.

O estudo também propõe a realização de novos experimentos para verificar os resultados obtidos com a tecnologia disponível em laboratórios especializados, “o que abre novos caminhos na investigação experimental desta classe de sistemas”, enfatiza Alejandro. Mundialmente, já há grupos que trabalham com o disprósio e outros gases formados por átomos com propriedades magnéticas, bem como com os sistemas de armadilhas ópticas e com as baixíssimas temperaturas, mas ninguém ainda juntou tudo isso em um mesmo experimento.

“Os físicos experimentais já conseguem hoje colocar dentro de uma câmara o gás de disprósio e esfriar o sistema até as temperaturas necessárias para ver esses efeitos. O que faltaria seria juntar, nessa montagem experimental, a armadilha óptica, o que por outro lado grupos que trabalham com armadilhas ópticas desse tipo também já têm feito, só que usando outro tipo de átomo. Então o que estamos propondo de alguma forma para essas duas comunidades é: se vocês misturarem esses dois experimentos, coisas interessantes vão acontecer”, destaca Alejandro.

Para o cientista, a importância do trabalho “reside justamente em tentar entender como esses mecanismos que estão presentes no sistema, especificamente a competição entre a interação dipolar e os efeitos da armadilha, podem se complementar para criar novos estados, novos comportamentos da matéria”.

Como estamos no campo da ciência básica, não é possível falar de aplicações imediatas. Mas a compreensão de mecanismos como os envolvidos nessa pesquisa pode levar a importantes desenvolvimentos tecnológicos no futuro. Essas fases que, ao mesmo tempo, são ordenadas e não periódicas têm despertado o interesse de pesquisadores da área de computação quântica, por exemplo. “Essas fases quase-cristalinas podem ser usadas, claro que de uma forma muito mais elaborada, mas elas podem estar na base de novas formas de encriptar dados, por exemplo. Há vários trabalhos, que inclusive vários dos meus colaboradores têm compartilhado comigo recentemente, propondo aplicações desse tipo de fase da matéria na computação quântica”, explica Alejandro. 

“Sem o trabalho acadêmico, sem o entendimento prévio das propriedades fundamentais desses sistemas, seria muito difícil atingir o controle necessário para a sua utilização em aplicações tecnológicas. Assim, a pesquisa em ciência básica é a frente que faz a exploração. A gente descobre novos territórios, e só após termos entendido bem o princípio de funcionamento do fenômeno de interesse é que o mesmo passa a poder ser aproveitado em novas tecnologias”, complementa o pesquisador.

 

Camila Raposo | [email protected]
Jornalista da Agecom| UFSC
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