SC: casos praticamente idênticos envolvendo plataformas de pesca evidenciam vantagens da solução consensual

No processo tradicional, depois de abandono da estrutura, parte dela desmoronou em 2020; naquele em que houve autocomposição, com protagonismo do Ministério Público Federal, acordo foi finalizado no último dia 30 de março

Foto mostra parte dos componentes da mesa durante a audiência pública. Procurador Alexandre Gavronski, membro do MPF, segura o microfone

Alexandre Gavronski, membro do MPF que participou ativamente das negociações nos últimos quatro anos, durante audiência pública que selou acordo para a Plataforma de Pesca Praia do Rincão, em SC. Foto: Reprodução

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Novo Código de Processo Civil (2015)

 

Balneário Rincão. Litoral sul de Santa Catarina.

Duas plataformas de pesca irregularmente construídas na década de 1990, sobre área da União (mar, praia e dunas, que são bens de uso comum do povo), e que, em 2012, viraram alvo de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal. Dois desfechos completamente diferentes.

No primeiro deles, que seguiu o rito processual tradicional – com sentença da Justiça condenando os réus (em março 2016), recurso ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e posterior acórdão do TRF4 confirmando a condenação (em outubro de 2016) –, o resultado foi abandono da estrutura, deterioração e desabamento de parte dela em 2020. Como determinado na decisão, a Associação Plataforma de Pesca Entremares havia entregado o bem à União que, ao contrário do que se esperava, não conseguiu mantê-lo em condições de uso.

No outro, o caminho parecia ser o mesmo. Em outubro de 2017, houve sentença condenatória da Justiça em termos praticamente iguais aos da anterior, acolhendo integralmente os pedidos do MPF. A decisão condenava a União a apossar-se administrativamente da plataforma e a não conceder seu uso, exceto parte do bem, exclusivamente à pesca e mediante licitação, assegurado o livre acesso da população ao restante das dependências. Também condenava a Associação Plataforma de Pesca Praia do Rincão, responsável pela construção da estrutura, a desocupar as áreas da União (sem direito a ressarcimento), a pagar indenização pela ocupação clandestina do bem público por mais de duas décadas, a remover qualquer obra sobre o cordão de dunas, como estacionamento, cerca e guarita, bem como a remover espécies exóticas plantadas no local, e ainda a recuperar o dando ambiental provocado (neste último ponto, a União e os municípios de Içara e Balneário Rincão também foram condenados de forma solidária e subsidiária).

No entanto, em outubro de 2018, os advogados da associação da plataforma, conhecendo os rumos que havia tomado o caso anterior, em vez de simplesmente tentarem anular ou reformar a decisão no TRF4, ingressaram com proposta de conciliação. O MPF, desde logo, percebeu que a via alternativa poderia ser a melhor forma de resolver o conflito.

“Em razão do evidente e preocupante fracasso da solução tradicional na plataforma sul em condições essencialmente idênticas, ficou evidente para o Ministério Público Federal desde o primeiro momento que a solução consensual deveria ser buscada com empenho, ainda que fossem previsíveis as dificuldades para construí-la. Seria necessário compatibilizar a adequada proteção aos direitos difusos que justificavam a atuação do Ministério Público – o meio ambiente equilibrado, com recuperação da vegetação nativa de restinga e fixadora de dunas que tinha sido suprimida para dar lugar ao estacionamento, e a possibilidade de acesso à plataforma para o público em geral – com os legítimos interesses da União, da associação que mantinha e administrava a plataforma e do município de Balneário Rincão”, explica o procurador regional da República Alexandre Amaral Gavronski, membro do MPF que participou ativamente das negociações nos últimos quatro anos.

Entre julho de 2019 e setembro de 2022, foram nove audiências públicas (tempo alongado em função da pandemia do novo coronavírus). Intensas discussões travadas entre MPF, associação da plataforma, União, município de Balneário Rincão*, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO).

A associação, por exemplo, insistia em manter o estacionamento construído sobre as dunas – que gerava maior comodidade a seus sócios. O MPF sustentava a necessidade da remoção e da consequente recuperação das dunas, que são área de preservação permanente. No fim, como solução intermediária, o município comprometeu-se a ceder dois terrenos bem próximos para a construção do estacionamento, local, inclusive, onde haverá espaço para que pescadores artesanais (não necessariamente membros da associação da plataforma) possam vender seus produtos. O MPF também preocupava-se com a ampliação da gratuidade para visitação à plataforma. Havia ainda questões complexas a serem equacionadas em relação à indenização devida pela associação à União pela ocupação irregular durante tantos anos.

“As soluções consensuais apresentam algumas vantagens para assegurar efetividade aos direitos se comparadas às soluções judiciais tradicionais: costumam ser mais rápidas e menos custosas e quase sempre são mais fáceis de implementar por dispensarem a execução forçada e os inúmeros conflitos ocasionados no curso desta”, explica Gavronski. “Foi atentando a essas vantagens que o legislador brasileiro determinou o estímulo às soluções consensuais dentre as normas fundamentais do processo civil nos §§2º e 3º do Novo Código de Processo Civil (CPC15.)”, complementa o procurador.

Interesses divergentes, como o caso do estacionamento, foram sendo alinhados um a um ao longo das conversas. O resultado de cada uma das audiências, que pode ser visualizado nestes links (jul19set19out21, nov21dez21abr22jul22ago22 set22), permite entender em detalhes o processo de construção da solução consensual definida em 21 de setembro de 2022 e cujo trânsito em julgado ocorreu no último dia 30 de março.

“A negociação não foi fácil e exigiu de todos os envolvidos, instados continuamente pelo Ministério Público Federal e pelo Sistema de Conciliação do TRF4, uma dedicação crescente ao longo das várias audiências. Valeu todo o esforço: o resultado final foi muito positivo e gratificante para os envolvidos na negociação e para a comunidade diretamente interessada. Ele provavelmente servirá de parâmetro para regularização de outras plataformas de pesca no país. Sem dúvida, um case de sucesso das soluções consensuais para o qual o Ministério Público Federal contribuiu decisivamente”, finaliza o procurador.

Assista ao vídeo da audiência pública final

Em resumo, ficou definido o seguinte (confira a íntegra do acordo):

• a plataforma passa a ser reconhecida como propriedade da União e será incorporada a seu patrimônio;
• a União, por sua vez, cederá o uso ao município, que especificará, entre outros pontos, quais atividades serão objeto de licitação, quais serão dela dispensadas e quem administrará o recurso obtido com os ingressos para acesso à plataforma;
• o município cederá o uso da plataforma à associação, que já a ocupa e explora há mais de duas décadas;
• a União não deverá qualquer indenização por ressarcimento de eventuais benfeitorias na plataforma;
• a indenização devida à União pelo ocupação de sua área por mais de duas décadas é de R$ 307.318,19, valor considerado já pago sob a forma de obras de engenharia realizadas na plataforma ao longo dos anos;
• a prefeitura e a associação se comprometem a reverter parte da receita obtida (com a cobrança de ingresso, por exemplo) em obras ou serviços de conservação da plataforma (valor anual estabelecido em R$ 32.328,26, a ser corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA);
• a associação se compromete a executar plano de recuperação da área degradada, que envolve, entre outros, retirada do estacionamento, recuperação e fixação das dunas, instalação de placas informativas descrevendo a área em recuperação, remoção de resíduos sólidos na área, principalmente os de construção civil, e promoção de maior biodiversidade, com utilização de flora nativa;

• o município adquirirá área para instalação de estacionamento próximo à plataforma e dos equipamentos necessários à sua utilização;
• o município instalará, no novo estacionamento, dois espaços adequados à venda de produtos da pesca extrativista realizada pelos filiados à Colônia de Pescadores Z33SC;
• o município construirá passarelas para acesso da população à praia e à plataforma, observadas regras ambientais e de acessibilidade;
• diversos públicos terão acesso livre e gratuito à plataforma para visitação (sem pesca), entre eles, pessoas de baixa renda (observados limites mensais), idosos, crianças, pessoas com deficiência, estudantes e professores de cursos que guardem relação com a vida e atividade marinha, pessoas indicadas mensalmente pela Colônia de Pescadores Z33SC dentre olheiros e participantes de cursos;
• o valor a ser cobrado para ingresso aos não associados que não se enquadrem nos critérios de gratuidade observará os parâmetros cobrados em plataformas similares existentes na região sul do Brasil, não podendo exceder 10% do valor da mensalidade normal de associado.

Cronologia do caso
Plataforma de Pesca Entremares (sul)
Processo no TRF4: 5005007-35.2012.4.04.7204

Construída por associação local na década de 1990, sobre bem público de uso comum do povo, mas que era utilizada e explorada para fins exclusivamente particulares, com acesso restrito a sócios e pagantes).

Contava com rampa de acesso e estacionamento sobre bens da União (dunas, praia e mar territorial), parte área de preservação permanente, sem que tivesse havido autorização do ente federal ou a concessão de licença ambiental para instalação ou operação do empreendimento.

Plataforma de Pesca Praia do Rincão (norte)
Processo no TRF4: 5004821-12.2012.4.04.7204

Construída por associação local na década de 1990, sobre bem público de uso comum do povo, mas que era utilizada e explorada para fins exclusivamente particulares, com acesso restrito a sócios e pagantes).

Contava com rampa de acesso e estacionamento sobre bens da União (dunas, praia e mar territorial), parte área de preservação permanente, sem que tivesse havido autorização do ente federal ou a concessão de licença ambiental para instalação ou operação do empreendimento.

Maio 2012
Ajuizada ação civil pública pelo MPF
Maio 2012
Ajuizada ação civil pública pelo MPF
Março 2016
Sentença da Justiça Federal em SC condenando os réus
Outubro 2017
Sentença da Justiça Federal em SC condenando os réus
Outubro 2016
Acórdão do TRF4 manteve integralmente a sentença (acórdão e voto)
Outubro 2018
Proposta de conciliação apresentada pela associação da plataforma e abraçada pelo Ministério Público Federal. A partir de então, foram quase quatro anos de tratativas, com nove audiências públicas (jul19, set19, out21, nov21, dez21, abr22, jul22, ago22 e set22).
Setembro 2020
Em total abandono, com deterioração de peças estruturais, parte da plataforma (que agora pertence à União) desabou. A partir de então, o MPF passou a atuar em busca da melhor solução para o problema, tendo em vista a segurança da população e a preservação do meio ambiente. Em julho de 2022, o órgão emitiu recomendação à prefeitura, que já a respondeu.
Setembro 2022
Celebração de acordo entre as partes

Março 2022
Acordo transitou em julgado (com redação final)

*Quando a ação civil pública foi ajuizada, em 2012, a plataforma ainda pertencia ao município de Içara. Contudo, com a emancipação de Balneário Rincão em 01/01/2013, a área da plataforma deixou de pertencer a Içara. Assim, o município acabou não enviando representantes para as audiências públicas.

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