Construções irregulares: as consequências dos contratos de gaveta na Grande Florianópolis

Sem água e sem eletricidade: essas são duas condições que aqueles que vivem em construções irregulares conhecem. Mesmo sendo essenciais para a sobrevivência, nem todos podem desfrutar dos serviços em Florianópolis — as opções não são acessíveis para quem construiu em terrenos sem desmembramento ou Núcleos Urbanos Informais (NUI).

Rio Vermelh, no Norte da Ilha, é o bairro com maior percentual de construções irregulares na Capita

Rio Vermelho, no Norte da Ilha, é o bairro com maior percentual de construções irregulares na Capital – Foto: Arquivo ND

Entretanto, as dificuldades não ficam restritas ao lar. Basta sair de casa e caminhar pelas ruas para presenciar a ausência de atendimentos básicos, incluindo creches e postos de saúde.

Os números do Mapa da Irregularidade da Prefeitura de Florianópolis evidenciam um cenário preocupante no Norte da Ilha — São João do Rio Vermelho (81,84%), Ingleses (66,35%) e Cachoeira do Bom Jesus (48,37%) estão entre as cinco primeiras colocações na lista, enquanto Campeche (71,80%) e Barra da Lagoa (51,46%) fecham a classificação das anormalidades.

Para quem conhece a situação, o percentual comprova a veracidade, como afirma a presidente da Associação de Moradores de Ingleses e Santinho (Amoris), Daniele Novaes, reforçando que muitas comunidades ainda sobrevivem com ligações clandestinas. “Ingleses é um canteiro de construções irregulares”, comenta Daniele.

No caso da auxiliar de saúde bucal Carla Rosana de Ávila Couto, o carinho pelo bairro dos Ingleses surgiu durante as viagens a Santa Catarina, sentimento que impulsionou a saída do Rio Grande do Sul.

Por mais que o acesso à água e luz estivessem presentes desde a chegada, há algo que está sendo celebrado. “A rua que moro, fazia 11 anos que era de chão batido, e agora está sendo calçada”, observa a moradora. Ela reside em apartamento e adquiriu o imóvel por meio de um contrato de compra e venda, sem a matrícula junto à prefeitura. Agora, o maior impeditivo é o valor que precisa ser pago para normalizar a moradia.

Para evitar casos como o de Carla, compreender aquilo que está em desacordo com as normas é o ponto de partida.

“Construções irregulares são construídas sem a anuência dos órgãos competentes e violam a legislação (Código de Obras, Plano Diretor e zoneamento). Também são obras que apresentam inconsistências em relação ao projeto aprovado na prefeitura”, explica o mestre em arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Igor Tadeu Lombardi de Almeida.

Ele salienta que as falhas também são encontradas em áreas nobres. “Tornou-se um processo crônico em Florianópolis, similar ao que ocorre nos grandes centros brasileiros”, acrescenta o doutorando.

No entanto, o problema com o loteamento do solo e as construções não são algo novo. Na opinião da arquiteta e urbanista do colegiado de Habitação, Regularização Fundiária e Direito à Cidade da Associação dos Municípios da Região da Grande Florianópolis (Granfpolis), Daniela Otto, essa é uma característica de diversas cidades de Santa Catarina.

“Por muitos anos essas pessoas foram vistas como marginais […], mas não tinham o que fazer. O que sobrou foi comprar um terreno irregular. Foi comprar um imóvel vindo de um parcelamento irregular. E ela viveu por muitos anos sem ter nenhuma segurança”, argumenta a profissional, lembrando da importância em reafirmar a moradia.

“É confirmar para a família que mora há 20 anos naquela área que esse pedaço de chão é dela”, destaca Daniela, esclarecendo que um dos benefícios da regularização é o valor que volta aos cofres públicos.

Com bairros de todas as regiões da Capital na lista de irregularidades, a explicação pode estar no crescimento desordenado e especulação imobiliária, que incentivam a ocupação irregular, falta de fiscalização, carência de políticas habitacionais adequadas para atender à demanda de moradia da população de baixa renda e alto custo na elaboração de projetos e mão de obra, pelo menos para o doutor em urbanismo e professor de planejamento urbano da UFSC, Elson Manoel Pereira.

“O atual Plano Diretor e leis podem não ser suficientes para atender plenamente as necessidades da população, especialmente no que diz respeito à regularização fundiária e controle do crescimento urbano”, diz o docente.

Sendo assim, a preocupação com a legislação é compartilhada com o professor de direito administrativo, ambiental e urbanístico da UFSC, Pedro Niebuhr.

“As leis devem ser modernizadas, tanto as que discriminam regras para as construções quanto as que tratam dos procedimentos de apuração e responsabilização por irregularidades. Também são responsáveis pela situação de irregularidade epidêmica que as cidades brasileiras se encontram”, relata o especialista.

Bairros com maior índice de construções irregulares

  • São João do Rio Vermelho: 81,84%;
  • Campeche: 71,80%;
  • Ingleses: 66,35%;
  • Barra da Lagoa: 51,46%;
  • Cachoeira do Bom Jesus: 48,37%;
  • Pântano do Sul: 42,98%;
  • Lagoa da Conceição: 38,39%;
  • Ribeirão da Ilha: 35,98%;
  • Ratones: 34,09%;
  • Sede Insular: 17,49%;
  • Canasvieiras: 16,58%;
  • Santo Antônio de Lisboa: 16,26%
  • Sede Continental: 5,21%

Como estão as regulamentações fundiárias?

Para normalizar a situação jurídica, ambiental e social das moradias, faces que contemplam os segmentos de construções irregulares, a prefeitura da Capital lançou, em 2023, o Floripa Regular.

São 7 eixos que norteiam o projeto, incluindo Minha Rua Regular, Regularização Fundiária Urbana (Reurb) Social, Histórico e Específico, Lar Legal, Minha Casa Regular e Meu Bairro Regular. O órgão alega que o foco é a construção de uma cidade em que o cidadão tenha segurança jurídica sobre a propriedade.

Em abril, um novo decreto possibilitou a regularização dos serviços de água e eletricidade para moradores que possuem imóveis em processo de regularização.

Todavia, mais de 40% da população de Florianópolis ainda enfrenta dificuldades legais e a falta de equipamentos públicos, de acordo com informações da prefeitura.

Para quem acompanha o envolvimento dos municípios e o interesse das famílias que desejam mudar a realidade, o avanço é fundamental. “A regularização fundiária vem melhorando, embora os parcelamentos irregulares em si não necessariamente estejam diminuindo. Estamos regularizando bastante, mas talvez não tenhamos conseguido combater o parcelamento irregular do solo”, informa Daniela Otto, destacando as entregas feitas nos municípios.

Porém, além de ampliar o alcance para aqueles que desejam garantir o direito da moradia, é preciso incentivar a fiscalização.

“O papel do poder público, diante de uma realidade permeada por construções irregulares, seria investir na eficiência do sistema de controle. No entanto, se a fiscalização é deficiente, se as pessoas contam com a impunidade ou se a sanção administrativa não for relevante e séria, o sistema passa a ser disfuncional”, justifica Pedro Niebuhr.

Para quem está diante dos moradores e tem como intuito promover a conscientização, ainda existe um empecilho: a comunicação com a administração municipal — e as consequências são evidentes. “Impacta desde a valorização do imóvel até facilitação para venda e legitimação da propriedade”, elenca Daniele Novaes.

Fiscalização na Grande Florianópolis

Assim como a Capital, São José e Biguaçu também contam com áreas e famílias em construções irregulares. Confira o que está sendo feito em cada município:

  • São José

Com pouco mais de 270 mil habitantes, a fiscalização é uma das medidas adotadas para coibir o uso de áreas erradas. “Existem em torno de 15 pontos em que há ocupações irregulares, que fiscalizamos constantemente.

Não existe um percentual específico, mas temos pontos que acompanhamos cotidianamente”, fala o Secretário de Urbanismo e Serviços Públicos e Superintende da Fundação Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Michael Pedro Rosanelli.

Com um sistema em parceria com a Polícia Federal e uma equipe de 16 policiais aposentados que fazem o acompanhamento diário, existem bairros com maior número de ocorrências.

“O primeiro é o Serraria, que tem mais construções nesse sentido, de ocupações. Posteriormente, Colônia Santana e Forquilhas, os três bairros onde existem mais construções irregulares”, pontua o secretário.

  • Biguaçu

Em Biguaçu, os mecanismos utilizados para acompanhar as unidades habitacionais são orientados pela fiscalização conjunta, com auxílio de diversos setores, incluindo a assistência social.

“Bairros com maiores índices de vulnerabilidade são os mais atingidos. Em razão da geolocalização conurbada junto a São José, percebemos maior índice nos bairros Jardim Janaína e Bom Viver”, declaram o Superintendente da Fundação Municipal de Meio Ambiente de Biguaçu (Famabi), Thiago Martins Coelho, e o Secretário Municipal de Planejamento, Ederson Kremer de Souza.

Em 2023, o município passou a contar com leis complementares que apontam os parâmetros para normalização (Lei nº 272 e 273).

“Mecanismos como a Regularização Fundiária (Reurb) e o Lar Legal, em parceria com o Poder Judiciário, têm possibilitado levar a tão sonhada regularização dos imóveis, assim como os serviços essenciais”, aponta o superintendente e o secretário.

Outra mudança é o novo Plano Diretor, que prevê o reordenamento do zoneamento — o propósito é o desenvolvimento econômico e bem-estar social.

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