Florianópolis vira polo de excelência em serviços médicos e de uso da tecnologia na medicina

Retirar a vesícula biliar, remover a próstata ou fazer uma cirurgia bariátrica costumava envolver vários profissionais em procedimentos complexos, invasivos e com nível considerável de risco, e não era em qualquer lugar que os pacientes poderiam encontrar soluções para seus problemas de saúde.

Florianópolis, particularmente, era vista como um local de poucos recursos até três ou quatro décadas atrás, quando se dizia, com uma boa dose de ironia, que “o aeroporto é o melhor hospital da cidade”.

Hospitais que atendem 24 horas por dia e com equipamentos completos de diagnósticos hoje são realidade na capital catarinense – Foto: Leo Munhoz/ND

Nada é mais extemporâneo do que isso, hoje em dia. A saturação do sistema público de saúde, após a Constituição de 1988, e a transferência dos estabelecimentos vinculados às fundações hospitalares para as secretarias estaduais de Saúde mudaram radicalmente o cenário da prestação de serviços nesta área no país. Até ali, os pacientes privados detentores de convênios eram atendidos na rede pública. Depois disso, uma vasta gama de clínicas e hospitais surgiu por iniciativa de médicos que se tornaram empreendedores no campo da saúde.

O resultado disso em Florianópolis e em outras cidades foi a grande expansão na oferta de serviços de ponta que colocaram o Estado em situação idêntica às de São Paulo e do Distrito Federal quando se fala em excelência no setor. Se os pacientes da Capital corriam para os hospitais Infantil, Celso Ramos, Florianópolis e Universitário, atualmente têm também como opções o SOS Cárdio, o Baía Sul, o Santa Helena, o hospital da Unimed e o Caridade – este, mais que bicentenário, mas com atendimento misto para o SUS (Sistema Único de Saúde) e a área privada.

“Essa situação trouxe mais investimentos, tecnologia e inovação ao setor”, diz o presidente da ACM (Associação Catarinense de Medicina), Ademar José de Oliveira Paes Junior, que também atua na clínica Imagem e é CEO da LifesHub, empresa de tecnologia na área médica. Surgiram novas clínicas, laboratórios modernos, equipes de especialistas e avanços em procedimentos de anestesia, técnicas cirúrgicas e diagnósticos por imagem.

Num universo mais amplo, as inovações também foram responsáveis pela oferta de equipamentos de alta precisão e de medicamentos mais eficientes. “O empreendedorismo e a inovação chegaram com força e também vêm beneficiando os hospitais públicos”, diz o médico.

Equipamentos tecnológicos são cada vez mais comuns em hospitais e clínicas – Foto: Leo Munhoz/ND

“Hoje, para qualquer tratamento, só se sai de Santa Catarina em ocasiões muitos raras”, ressalta o médico Murillo Ronald Capella, umas das referências da medicina em Santa Catarina. “Temos médicos de ponta nas áreas da cirurgia cardíaca, de fígado e rim, por exemplo. Hospitais privados atendem 24 horas por dia e são donos dos equipamentos mais completos de diagnóstico”.

A saúde como um promissor ambiente de negócios

Num cenário em que médicos se tornaram empresários, a própria indústria está descobrindo o potencial da saúde como segmento atrativo para investimentos e com demanda por inovação. No dia 30 deste mês, a Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina) vai lançar um MBA focado nas demandas do setor. Ele não era considerado muito relevante pela indústria, que agora passa a ver a saúde como um promissor ambiente de negócios. “Saúde e desenvolvimento econômico estão muito ligados, são interdependentes”, diz o médico Ademar Paes Junior.

Saúde responde hoje por 9,4% do PIB do país e deve passar dos 16% até 2035. A geração de mais riquezas pode criar novas possibilidades para a medicina privada e recursos para o financiamento da saúde pública, por parte dos governos. A indústria e as entidades classistas tratam a saúde como um ecossistema que precisa ser pensado de maneira integral. Neste sentido, a tecnologia vai ajudar na reinvenção do sistema, que ainda apresenta falhas e defasagens.

Com investimentos privados, o surgimento de grupos de hospitais e clínicas, os avanços na medicina laboratorial, nas técnicas cirúrgicas, na indústria farmacológica e nos equipamentos, a inovação chegou para ficar e não há limites para a expansão respaldada pela tecnologia. “A saúde é o próximo estágio civilizatório da humanidade”, afirma o presidente da ACM. Para facilitar esse caminho, os médicos são treinados, ainda dentro da universidade, para assumirem responsabilidades e tomarem decisões, beneficiando tanto a rede particular quanto o SUS.

O papel da ACM no aprimoramento científico do setor

Antes de chegar a esse estágio bastante receptivo à tecnologia e à inovação e oferecer serviços de excelência, a medicina passou por diferentes fases em Santa Catarina. A Associação Catarinense de Medicina, criada há 86 anos, teve papel fundamental nesse processo, porque foi porta-voz das lutas médicas, integrou a categoria e sempre investiu no aprimoramento científico do setor. “Participamos da fundação do CRM (Conselho Regional de Medicina), da criação da Faculdade de Medicina, da Unimed e da Unicred”, destaca o atual presidente da ACM, Ademar José Paes Junior.

Presidente da ACM, Ademar José de Oliveira Paes Junior é CEO da LifesHub, empresa de tecnologia voltada para a área médica – Foto: Leo Munhoz/ND

Com seu papel agregador, a associação também tomou posições em relação às políticas de governo para a saúde, estimulou as atividades científicas e o empreendedorismo médico. Nos últimos anos, se aproximou da Acate (Associação Catarinense de Tecnologia), da Federação das Indústrias do Estado, da Fundação Certi, do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e das universidades que formam mão de obra para o setor. Os eventos, palestras e rodadas de negócios, nos últimos anos, focaram especialmente no que a inovação tem a oferecer para os médicos, clínicas e hospitais.

Hoje, muitos médicos egressos das universidades são mentores e usuários das tecnologias e desenvolvem os próprios softwares, em segmentos como a biotecnologia, o digital e a robótica aplicada aos procedimentos cirúrgicos. Com isso, cresceu o número de especialidades (a cidade é referência em ortopedia, urologia e medicina fetal, entre outras áreas), evitando deslocamentos para fora do Estado para diagnóstico e tratamento de algumas doenças. A própria condição de Florianópolis de cidade sem indústrias levou muitos recém-formados a investirem em startups e empresas de tecnologia e informação, inclusive na área da saúde, ganhando clientes aqui, no país e no mundo.

“A ACM ajudou a colocar Santa Catarina num dos mais altos patamares do país, graças também ao mérito dos médicos, mas nosso parâmetro não é o Brasil e sim nações onde a medicina é ainda mais avançada”, diz Ademar Paes Junior. “A associação defende o SUS para todos, mas é sabido que a Constituição de 1988 foi feita sem a previsão de aumento dos custos que traria. Além disso, há problemas de gestão, subfinanciamento e corrupção no sistema”.

Agora, a ACM está elaborando o Mapa de Risco da Saúde dos Catarinenses, que tem o objetivo de “colaborar para a construção de uma política de saúde cada vez mais eficaz no Estado, auxiliando desde os gestores do setor, nas esferas pública e privada, até instituições civis e empresas que queiram promover medidas de prevenção e cuidados para a qualidade de vida em Santa Catarina”.

Inteligência artificial como suporte às equipes médicas

Se o cirurgião pode controlar um procedimento a partir de um painel de controle, facilitando a mobilidade e o dinamismo dos profissionais durante uma operação, a IA (Inteligência Artificial) também veio para ficar e entra cada vez mais na rotina das equipes médicas. Há sistemas especializados e ferramentas que têm a IA como suporte, no tratamento de doenças, no desenvolvimento de equipamentos, na manutenção de aparelhos clínicos, na emissão de resultados de exames e na própria criação de novas políticas públicas de saúde.

Referência na medicina em SC, o doutor Murillo Capella diz que hoje só se sai do Estado em busca de tratamento em casos muito específicos – Foto: Leo Munhoz/ND

A força dos grupos empresariais na área da saúde facilita o acesso às novas tecnologias, como ocorre também em outras cidades importantes do Estado, como Joinville e Blumenau. Na Capital, a holding Hospital Care integra o hospital Baía Sul, a clínica Imagem e a clínica e maternidade Santa Helena. Isso permitiu, nos últimos anos, avanços relevantes em especialidades como hemodinâmica, cirurgia intrauterina, angiologia cirúrgica vascular, cirurgia buco-maxilo-facial e oftalmologia.

Num país onde 75% das pessoas dependem do SUS para se tratar, a demanda por investimentos públicos na saúde é gigantesca, mas é possível que procedimentos como a cirurgia robótica e os testes genéticos, por exemplo, caiam de preço com o tempo e sejam oferecidas a um público mais amplo.

O médico Murillo Capella prega a parcimônia no uso da tecnologia – não pelo que ela pode proporcionar, mas pelo risco do apego excessivo à tecnologia, em detrimento do diálogo com os pacientes. “Tem que haver equilíbrio entre o técnico e o humano”, afirma.

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